Tentar definir o que é a arte ou pra que ela serve é uma tarefa complexa e um pouco arriscada. Uma das definições que acho mais interessante é que ela lida com o que não é palpável, com as abstrações dos seres humanos, suas emoções. E, voltando para o nosso ramo, uma vez um amigo meu me disse que gostava do cinema por que ele nos empresta emoções. Nos permite experimentar coisas que dificilmente viveríamos na vida real. Ainda, segundo pesquisas, pessoas que assistem à mais filmes de drama são propensas a serem mais felizes, pois, ao assistir vivências negativas em filmes, elas passam a valorizar mais o que tem e as pessoas à sua volta.

Ano passado, ao lançar seu disco Recomeçar, o vocalista da banda O Terno, nos apresentou seu universo íntimo e entrou em ressonância com muita gente (inclusive comigo). O primeiro disco solo do cantor foi largamente elogiado, entrando para as listas de melhores de 2017 de diversos veículos de imprensa. Segundo o cantor, o disco traz canções que ele fazia no aconchego do seu quarto, que tinham muito a ver com seu eu interior, mas que não se encaixava em sua banda principal.

Agora em 2018, o artista lança o clipe de Recomeçar, a faixa título e que fecha o disco muito bem. A letra da música fala, a primeira vista, sobre o término de um relacionamento e o ato de recomeçar a vida sem a pessoa que o acompanhava até então. Como não tem uma demonstração clara de que o “ela” que ele usa é uma moça, é possível colocar qualquer coisa no lugar desse pronome. Pra mim, funciona como um reinventar, deixar o passado no passado e estar aberto a novas possibilidades. Preencho o “ela” com “personalidade”. Estou numa fase da vida em que preciso realmente recomeçar, realinhar algumas coisas que não estavam legais e é necessário mudar, principalmente ao chegar na “adultescência”. É interessante que muita gente que converso, que tem a idade próxima a minha e conhece o artista, também se identifica de forma parecida não só com essa faixa mas com o disco como um todo.

Confere o vídeo aí em baixo e a seguir, a gente continua o papo.

O clipe mostra o cantor em uma performance de desconstruir um piano que, segundo ele, era de sua avó. Em sua conta no Instagram em um post para divulgar o clipe, Tim declarou:

“Busquei muito achar uma linguagem que tivesse a ver com a sinceridade que eu procurei por no disco. […] Registro lindo e delicado dessa performance simbólica de se abrir/desmontar que eu bolei com o piano antigo da minha vó!Espero que curtam.”

Pensando nessa fala, vamos usar dois termos que o Tim usou, para analisar o clipe: linguagem e performance. Ao mesmo tempo, vamos tentar costurar isso com trechos da música. Com relação a primeira vamos nos reter à linguagem cinematográfica, mas antes disso, vamos trabalhar com conceito de performance que está bem na moda no campo das artes.

A Performance compreende uma mistura de diferentes tipos de artes como teatro, música, artes visuais e literatura. A forma conhecida hoje, foi desenvolvida principalmente entre as décadas de 1960 e 1970 como desmembramento da pop arte, arte conceitual e minimalismo. Nesse período, a arte começa a se relacionar com as “coisas do mundo” e a realidade urbana. Nesse momento que surge um grande questionamento sobre o que é arte ou o não arte e mudanças nas estruturas dessa que iriam impactar bastante no que iria se produzir nos próximos anos.

Yoko Ono em sua performance Cut Piece.

Em 1964, Yoko Ono apresentou a performance Cut Piece (Corte um Pedaço), em que ela permanecia imóvel e uma tesoura estava disponível para que a plateia interagisse com ela da forma como quisesse. Recortar e remover pedaços de sua roupa. A performance colocava em prova a relação de confiança entre público e artista.

Pensando em performance, em um corpo que reage, no universo dos videoclipes me remete à um clipe clássico dos anos 1990: Nothing Compares 2 U, da cantora Sinéad O’Connor. Esse vídeo é composto basicamente pelo rosto da cantora reagindo ao o que ela canta em sua música. Isso me remeteu à um dos principais diferenciais do cinema para outras artes mais próximas dele como o teatro: a descoberta do rosto. Enquanto no teatro os atores precisam de gesticular bastante e projetar a sua voz mais longe o possível para que, da primeira a ultima fileira, as pessoas os compreendam, o cinema tem o recurso do close. Nesse o rosto do ator preenche toda a tela fazendo com que mínimas expressões faciais sejam o suficiente para passar o sentimento necessário ao espectador. Nesse clipe, a performance de Sinéad está centrada, ao invés de recheada de gestos com os braços e pernas, basicamente em suas expressões faciais. Isso constrói uma performance delicada em que os sentimentos são transmitidos de forma extremamente minimalista. Lindo.

Em 1997, o grupo Radiohead iria entrar para a história da música pop com o lançamento do disco OK Computer que foi aclamado por público e crítica como uma obra prima e hoje figura nas principais listas de melhores álbuns de todos os tempos. Entre as faixas do disco, No Surprises ganharia um clipe que traria o mesmo princípio de Nothing Compares 2U. Ele é basicamente o rosto do vocalista Thom Yorke dentro de uma espécie de capacete de astronauta que vai se enchendo de água no decorrer. O vídeo parece remeter a uma famosa cena do clássico de Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).

Anos mais tarde, Thom iria usar o corpo todo em performances de dois clipes. Um ainda no Radiohead com Lotus Flower e outro em sua outra banda Atoms For Peace e a música Ingenue. Nas duas músicas, o músico encarna o som e a letra em seu corpo, dançando em espaços onde a única matéria são os corpos.

Em Recomeçar, Tim resolve ser mais teatral. Ele usa não somente o corpo, mas recorre à aparatos cênicos. Ele concentra seu ato no desmontar um piano, num desconstruir que não quer dizer necessariamente a algo material, mas emocional e talvez até espiritual. Aqui que você encaixa o “ela”, que citei anteriormente, com algo particular seu

Eu vou deixar ela ir embora

Chegou a hora

Chegou a hora

O ato de desmontar um piano causa um certo desespero. Ao menos em mim, que não sabia que o instrumento era tão “desmontável” assim. Mais uma vez, esse desespero remete muito a esse Recomeçar que diz a letra. O mudar gera um certo desconforto, se reinventar, encarar algo novo é bem complicado a primeira vista. Mudar de casa, de emprego ou namorada, implica em diversos recomeços, de abandonar o passado e tentar lidar com um futuro. No meu caso, esse mudar é mais interno. Mudar algumas crenças, algumas certezas internas que tinha e percebi que não eram tão legais ou produtivas para a minha vida. E é bem difícil esse movimento, mas não impossível. Como diz outro trecho da música:

A dor do fim vem pra purificar

Recomeçar

Recomeçar

Agora indo em direção à linguagem cinematográfica, observamos primeiro a mise-en-scène. Esse é um termo em francês usado no cinema que significa algo do tipo “colocar em cena”. O que está presente no quadro do filme / vídeo que nos ajuda a entender a história.

Ao se pensar no cenário, já percebemos logo de início que o clipe busca uma espécie de “poesia crua”. Tim está diante de um piano, com suas roupas costumeiras, no meio de uma espécie de colina e os trilhos da câmera estão aparentes. Esses trilhos e o olhar de Tim direto para a câmera, olhando nos nossos olhos funciona como uma espécie de convite. Ocorre o que chamamos de “quebrar a quarta parede”. O filme ou o vídeo se relaciona diretamente com o público mostrando o que “deveria” estar escondido com o personagem olhando para onde não devia, direto para a câmera. Ele tira o espectador de um lugar passivo para também fazer parte da história.

Isso é presente em diversos filmes. Um dos exemplos clássicos, e talvez o primeiro da história do cinema, é em O Grande Roubo do Trem (1903). Uma das cenas o ator atirava direto para a câmera e, segundo relatos, o público que ainda não estava acostumado com o cinema, se assustava acreditando que o tiro poderia acertá-los. Martin Scorsese usou essa cena como referencia em Os Bons Companheiros (1990) com Joe Pesci reproduzindo a mesma cena.

Tal quebra acontece tanto no início do vídeo quanto no fim. No início, somos convidados a nos desconstruirmos, igual o processo feito com o piano. Tim mostra a nós que sabe da nossa presença, que somos cúmplices dele nessa performance. O final seria, enfim, o recomeçar que a música ilustra. Seu olhar junto ao piano desmontado sob seus pés é um indício de que precisamos nos reconstruir para que a música toque. Que o piano volte a ter vida.

O movimento da câmera é de um Travelling em que, tanto a câmera quanto quem a opera, deslizam sobre trilhos. Geralmente é utilizado para acompanhar o personagem enquanto ele se locomove. Aqui, ele é utilizado sobre trilhos circulares para nos proporcionar uma visão completa de todo o processo empregado pelo cantor. Vemos de todos os ângulos o desmontar do piano. Além disso, a fotografia vai ficando mais clara no decorrer do vídeo. Parece ser o iluminar de um momento que, inicialmente parecia sem solução. Chegando, finalmente ao ponto de recomeço.

O vídeo foi filmado totalmente em película o que dá um certo “charme”, com alguns granulados típicos de filmagens antigos além dos “arranhados” da película que aparecem por todo o quadro. Dá a impressão de um “registro histórico”. Como se numa caixa esquecida em cima do guarda roupas fosse descoberta por um neto e revelasse um passado performático de um avô (posso ter viajado um pouco aqui).

Ouvir esse disco e assistir à esse clipe, me lembra às primeiras vezes que ouvi Radiohead. Quando comecei a ver as traduções das músicas eu me senti abraçado. Como se houvesse alguém no mundo que me entendesse e que passava por situações e tinha os sentimentos bem próximos aos meus. A diferença de Tim é que ele está mais próximo de mim. Ele é brasileiro canta em português e esteve exposto à situações mais parecidas que a minha do que um grupo britânico.

O Tim também me passa muita verdade. Tive a oportunidade de assistir a um show dele com O Terno, no lançamento de seu último disco, Melhor do Que Parece (2016) e também no lançamento de Recomeçar. Nas duas apresentações ao vivo, senti uma energia muito boa. Ele transpareceu uma verdade que é possível sentir apenas em verdadeiros  artistas.

O clipe que além de Tim Bernardes, contou com a direção de André Dip e José Menezes, conseguiu através de recursos “simples” (entre aspas que não deve ter sido fácil levar esse piano pra ali), transformar em imagens sentimentos que estavam escritos. Expressos na letra da música e na alma do disco. Queremos mais disso. Por favor.

BÔNUS!

Como complemento coloco aqui em baixo a faixa Bônus de um programa da TV Cultura chamado Cultura Livre e que o Tim participou. Aqui ele faz novas versões para as músicas Changes do Black Sabbath e Paralelas do Belchior. No vídeo, ele explica o porque da escolha desses covers e fala um pouquinho sobre o seu disco.

Caso quiser ver o programa completo, deixo o link aqui.