Por Frederico Cabala

“Este filme não foi representado por atores, mas vivido por homens e mulheres que dedicaram momentos de suas vidas a uma experiência de cinema-verdade”. As primeiras palavras de Crônica de um verão (1961) são narradas por Jean Rouch (diretor ao lado de Edgar Morin) enquanto rodam imagens do vaivém de pessoas por uma Paris quase anônima.

Documentários registram o real? Há lugar para uma perseguida objetividade? Pode-se falar em neutralidade do olhar do cineasta e da filmagem? Essas questões agora podem soar anacrônicas e já desgastadas de tão tratadas. Mas no fim dos anos 1950, quando Crônica de um verão foi pensado, esse debate ainda não tinha reivindicado seu lugar na reflexão do documentário.

Novos equipamentos surgidos na década de 1950 causaram uma ruptura na maneira de se fazer cinema. Câmeras leves, aparelhos menores para captação de som, microfones lapela, possibilidade de gravação sincronizada, tudo isso possibilitou ao diretor mais alternativas de filmagem. Alternativas que logo desembocariam na Nouvelle Vague francesa e no Cinema Novo brasileiro (já pensou quão difícil seria ter uma ideia na cabeça se a câmera na mão tem uns 30 quilos?).

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No âmbito dos documentários, apareceriam duas vertentes que, resguardadas as medidas, permanecem como herança até hoje. O cinema-direto estadunidense e o conceito trazido ali nas primeiras palavras de Crônica: o cinema-verdade francês.

Com equipamentos mais portáteis, realizadores dos EUA como Robert Drew passaram a fazer filmes com característica observacional. A proposta era não interferir e interagir o quanto menos. Ser quase uma “mosca na parede”, usando expressão que caracterizou o cinema-direto. Assim, o diretor seria quase um espião da vida como ela é e teria meios de registrar com fidelidade o real.

Outro tipo de comportamento, o de ser “mosca na sopa”, fazia parte da intenção de diretores franceses do cinema-verdade. Não mais estar mostrando sem se mostrar, mas participar do acontecimento, se envolver, estar também no centro. Ser diretor e personagem. Jean Rouch e Edgar Morin eram desses. Para Rouch, a simples presença da câmera já muda completamente o que se projeta da pessoa, a qual se transforma em personagem. “Graças a esse pequeno monstro de cristal, ninguém é mais o mesmo”, ele alerta. O que não significa que tudo passa a ser pura mentira. Afinal, se alguém encena — e todos encenamos o tempo todo como seres sociais —, essa encenação faz parte do que a pessoa pensa ser ou do que quer ser, e isso pode dizer muito sobre ela. É vida e teatro, e não vida ou teatro.

Rouch entendia, nesse sentido, que “se minha personagem atuava, isso era o que tinha de mais autêntico nela”. Por isso, a interação entre o cineasta e os entrevistados deve ser explicitada, sendo a partir da relação entre esses dois polos que algo pode se revelar. O cinema-verdade não se trata de uma filmagem da verdade, mas da verdade da filmagem.

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A ideia de Crônica de um verão veio de Edgar Morin. O sociólogo participava como membro do júri da seção etnográfica de um festival de cinema italiano, quando teve interesse em tentar fazer um filme em que fossem projetadas, de maneira espontânea, singularidades da vida humana de pessoas comuns. Isso tinha inspiração no cineasta russo Dziga Vertov, que em 1929 fez o documentário Um homem com uma câmera, altamente reflexivo sobre o ato de filmar, e em 1922 fez uma série de documentários intitulada Kino Pravda, que em russo significa cinema-verdade. Outro que se inspirava em Vertov era Jean Rouch. Este, apesar de doutor em etnologia, praguejava contra a academia por ser fechada e distante dos objetos de estudo. Tinha ele, assim, seu próprio método baseado na imersão com o pesquisado. Uma observação participante bem inspirada no precursor do cinema documental, Roberto Flaherty. Daí aliou sua formação com o ofício de documentarista.

Com a admiração por Vertov em comum, Morin se uniu a Rouch para pensar em um filme baseado numa pergunta: como vivem os parisienses?

Após as palavras que abrem o filme e também este texto, Crônica se inicia com uma conversa entre os diretores — e personagens — Edgar Morin e Jean Rouch e duas outras personagens, Marceline e Nadine. Nessa conversa, eles pedem a elas para conduzirem perguntas aos transeuntes de Paris com intuito de descobrir como eles vivem. Em vez de fazer uso da famosa “voz de Deus” dos documentários tradicionais, que explicam tudo de maneira acabada, os diretores passam parte da condução do filme para as personagens. Uma flexibilização autoral para permitir a revelação do outro.

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Elas topam e saem a perguntar “Você é feliz?” ou “Está satisfeito com a vida que leva?” e recebem quase tudo como resposta. Desde um velho que se assusta com o microfone (a presença do equipamento interferindo) até a grotesca cena de um jovem estudante que pergunta qual o embasamento teórico da pergunta, se por acaso seria em Déscartes.

Outras reações às perguntas são também interessantes. Muitas giram em torno da contestação do trabalho. Como o funcionário de indústria Angelo que diz trabalhar 24h por dia, pois até o sono é descanso para mais trabalho. Quase um prelúdio de maio de 1968. Questões sobre imigração também são levantadas. Além de política internacional, pois o filme foi rodado em plena guerra de independência da Argélia.

Percebendo a importância desses temas mais coletivos, os diretores aos poucos substituem perguntas individuais sobre felicidade e passam a promover encontros entre os personagens para estimular discussões. Jantares, almoços, visitas a casas. Nesses eventos sociais, Rouch e Morin parecem testar até que ponto a presença da câmera pode ser ou não notada. Provocam para ver até onde há diferença na naturalidade das conversas, para que as pessoas exponham sua essência, sua intimidade, suas contradições. Isso é possível? À certa altura, ao entrevistarem duas crianças, uma menininha responde: “Não tem como mentir para a câmera”.

O filme é a todo tempo exercício de autorreflexão. O que fica claro no fim, quando um copião da gravação é exibido para os personagens, que reagem de modo heterogêneo. As pessoas se imaginam como melhores do que o condensado projetado na tela. Uns acham que outros se revelam demais, se expõem demais. Outros dizem que uns não se revelam em nada, atuam e se forjam o tempo inteiro.

Uma fala da personagem Marilou se destaca. Avisa ela: “No final, para se obter um fio de verdade, o personagem deve estar sozinho, quase à beira de um ataque de nervos”, coroando de maneira magistral um filme que é uma crônica de como ele próprio foi feito. A verdade da filmagem.

Você não sabia que…

– A personagem Marceline após o filme viraria também cineasta, conhecida com Marceline Loridan-Ivens.

– Aqui no Brasil, esse jeito provocativo e convidativo de se fazer documentário para revelação do outro é muito do que se encontra na obra de Eduardo Coutinho. Crônica de um verão acaba com um copião sendo projetado para a plateia de personagens. Da mesma maneira que Cabra Marcado para Morrer (1984) começa. No DVD de Crônica lançado há alguns anos no Brasil pela Videofilmes, há um extra com faixas comentadas por Coutinho, entusiasmado com aquele jeito de fazer cinema que também era o seu.

 

Veja um trecho do filme: