Recentemente assisti a um vídeo da Louie Ponto que teve como efeito colateral toda uma revisão pessoal sobre o que foi ser adolescente, há cerca de 15 anos, enquanto alguém que começa a se entender como lésbica e a viver suas primeiras experiências. 

No vídeo, a criadora de conteúdo fala como nos anos 1990/2000 — pré-YouTube — era difícil ter acesso a filmes que, de alguma forma, apontassem outras possibilidades de existência e afetividade, que não a heteronormativa. Sua argumentação se sustentou, principalmente, em um dos hits da época, Assunto de Meninas (2001; outra referência aqui).

Protagonizado por Piper Perabo (Imagine Eu e Você, 2005), Jessica Paré e Mischa Barton (Marissa, do seriado O.C.: Um Estranho no Paraíso), o filme se passa em um colégio interno só para garotas e fala sobre lidar com perdas, famílias negligentes/preconceituosas, aceitação e, como já era de se esperar, morte. Naquela altura, eu só conseguia pensar se era isso que a vida adulta reservava pra mim. 

E por que esse desfecho nos parece tão óbvio e traçado?

A resposta é simples: pela reincidência de destinos (trágicos) comuns à maioria das personagens LGBTQIA+. 

Parece que foi ontem, mas o fato é que quando falamos de representatividade sinto que fomos do paleolítico ao neolítico nas últimas duas décadas. De certo que nem só de Diário Roubado (1992) vivíamos. Tinha também a sessão Coruja com Henry e June – Delírios Eróticos (1990) — foi assim que conheci a escritora Anaïs Nin —, o  high school sueco Amigas de Colégio (1998), mas a regra era clara: as chances de um final feliz são mínimas. 

E nem precisa ir muito longe. 

Se quisermos dialogar com o produto audiovisual de maior popularidade no Brasil, as telenovelas, fica ainda mais fácil visualizar como a questão foi se desenhando junto à opinião pública (que tem, de fato, um poder efetivo para influenciar os rumos desse tipo de narrativa). 

Quem não se lembra de quando, em Torre de Babel (1998), Silvio de Abreu teve que matar o casal Leila e Rafaela na explosão do Shopping Tropical Tower em resposta à rejeição da audiência? Apenas alguns anos depois, Mulheres Apaixonadas (2003) trouxe o romance das estudantes Clara e Rafaela, que encontrou uma recepção positiva, mas até certo ponto. Em Senhora do Destino (2004), Eleonora e Jennifer deram um passo a mais, já que além de viverem o relacionamento plenamente, ainda contavam com o apoio e respaldo de ambas famílias (um tremendo “bônus”!). 

Mas ainda tinha uma questão pendente: o beijo.

A expectativa era grande. Os debates, enquetes e receios também. Embora o primeiro beijo gay da televisão brasileira tenha acontecido em Amor e Revolução (2011), do SBT, existia uma enorme especulação sobre quando a Globo, emissora com maior alcance no país, faria o mesmo.

Até que Em Família (2014) aconteceu. Curioso que no mesmo ano o Big Brother tinha dentro do confinamento o casal, Clara e Vanessa. Cenas calorosas entre elas eram exibidas aos montes logo após a novela (e nos intervalos comerciais também). Lanço na roda uma provocação: em que tipos de imagens cabem, ou são permitidas, as relações afetivas e sexuais entre duas mulheres? 

A prova de que existe um caminho a ser reafirmado contínua e incansavelmente é Babilônia (2015). No folhetim, o casal vivido pelas veteranas Fernanda Montenegro e Nathália Timberg sofreu uma enorme rejeição atribuída à idade das personagens/atrizes. São raras as obras que abordam a sexualidade na velhice, um “tabu” injustificado. Aproveito o gancho para deixar a dica de um filme que lidou de maneira bela com a questão: Toda Forma de Amor, com Christopher Plummer vivendo Hal, um idoso que assume sua homossexualidade ao filho. 

Aqui, não faço uma diferenciação taxativa entre televisão (novelas e seriados) e cinema. Parto da ideia que o catálogo de imagens audiovisuais responsável por formar nossos referenciais estão alinhados ao que a filósofa Judith Butler argumenta sobre a função reguladora do discurso: “As regras que governam a identidade inteligível […] operam por repetição”. 

E se falamos de repetição, falamos de tropos.

 

O QUE É O TROPO “BURY YOUR GAYS”?

Antes de mais nada, vamos estabelecer uma base comum com relação ao termo. Um tropo é um dispositivo ou convenção narrativa utilizado para descrever situações que, por sua recorrência, se tornam uma espécie de clichê e o público os reconhece facilmente.

A vastidão de termos é tamanha que o site TV Tropes passou a coletar informações, de maneira colaborativa, no estilo Wikipedia, para sistematizar essas abordagens. A prática teve início com análises dos seriados norte-americanos e, posteriormente, alargou o campo para cinema, publicidade e até fanfic.

Bury Your Gays (em tradução livre, Enterre seus Gays) é um tropo onde personagens  LGBTQIA+ são mortos com uma frequência desproporcional e/ou sem justificativa, talvez por serem vistos como mais dispensáveis no âmbito das narrativas.

Esse tropo passou por algumas evoluções e desdobramentos ao longo dos anos. Vamos a um breve panorama.

Entre proibições e subtextos, o cinema sempre deu um jeito de eliminar ou punir severamente as personagens LGBTQIA+. O tropo Depraved Homosexual é um exemplo disso. Nele, personagens explicitamente gays são vinculados à uma ideia de vilania e sua sexualidade é encarada como traço negativo. Ainda que consiga engatar um relacionamento, muito provavelmente aquele responsável por “perverter” o outro enfrentará graves consequências (o acidente fatal que leva Jack Twist à morte em O Segredo de Brockeback Mountain, 2005).

A chegada da AIDS na comunidade queer foi um disparador potente na construção de novas histórias, sobretudo naquelas realizadas a partir dos anos 1980. Obras como Filadélfia (1993) ajudaram a popularizar um arquétipo próprio, a Tragic AIDS Story. Há também muitos trabalhos que abordam pessoas LGBTQIA+ como vítimas de agressões decorrentes da homofobia. Tais histórias se associam aos tropos Too Good for This Sinful Earth e ao Homophobic Hate Crime.

E ainda há os casos de But Not Too Gay ou de Bait-and-Switch Lesbians, em que os criadores conseguem dar continuidade ao romance, mas evitam mostrá-lo em detalhes matando um dos personagens. Para completar, temos o tropo Dead Lesbian Syndrome, atirbuído ao risco substancialmente maior de morte entre lésbicas, por muitas razões, uma delas sendo o suicídio (ver o tropo Gayngst-Induced Suicide).  

Por tudo o que foi dito, filmes como Desobediência (2017), Rafiki (2018), Carol (2015) e O Mau Exemplo de Cameron Post (2018) são um sopro de vida. Os conflitos, evidentemente, ainda estão lá: a comunidade judaica ortodoxa, o país africano que considera homossexualidade crime, o conservadorismo dos anos 1950, o retiro para “cura gay”. Os enfrentamentos inerentes à nossa existência no mundo continuarão a existir e a serem explorados no cinema. É assim que deve ser. 

Mas o giro oferecido por estes trabalhos está em suas resoluções, em seus finais. É crucial que  tenhamos a esperança de que depois da tormenta, há de existir um mar tranquilo para navegar. Ora com tempestade, ora com calmaria. Tudo bem. Estaremos vivos para experimentar tudo isso. 

Proponho um desafio: a partir de agora, quando assistir a um filme com personagens LGBTQIA+ pense em como elas se enquadram nesses e em outros tropos. Que tipo de  imagens estão sendo criadas em torno destes grupos e de que maneira isso impacta em nossas percepções?

Para te ajudar, o Telecine criou uma cinelist com filmes LGBTQIA+ e você pode assisti-los de graça por 60 dias. Mergulhe nessas preciosidades com essa facilitação exclusiva que eles deram para os nossos leitores. Quem já tem Telecine no pacote de TV por assinatura pode usar a plataforma gratuitamente, basta acessar com login da operadora. 

 

 

*Esse post foi produzido pela equipe do Cinemascope conta com o patrocínio do Telecine.

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