“O teatro é a arte principalmente do ator, o cinema é a do diretor”.

Para além dos jargões e clichês e todas as belas frases de Paulo Autran, como a citada anteriormente, cinema e teatro andam bastante juntos. Vira e mexe, as linguagens conversam tanto que, para nosso deleite, surgem alguns filmes como estes que o Cinemascope escolheu para celebrar o Dia Nacional do Teatro.

Quando pensamos na relação entre palco e telão, de início aparecem implicações técnicas e diferenças óbvias. Mas se pensarmos bem, as duas experiências brincam com a realidade e, de certa forma, transportam o espectador para um tempo-ilusão que vai muito além do espaço presente.

Há um bocado de magia contida no caminho para o cinema ou para o teatro: as luzes, a expectativa, a imersão. Tudo colabora para que o momento seja marcante – para bem e para mal –, desde o instante em que se decide qual é o título que será visto hoje.

Para o ator, apesar de serem linguagens diferentes, os processos de pesquisa envolvendo uma obra nova também são igualmente desafiadores. Por mais que haja identificação com a personagem, o roteiro, a estética do diretor, trata-se de contar outra história; uma que não é sua, mas é como se tivesse nascido colada à sua pele.

Com frequência, o processo leva um tempo considerável. Às vezes, a peça é tão complexa, ou já foi montada tantas vezes que não sabemos nem por onde começar. E daí, iniciam-se as pesquisas, as reuniões, as tentativas várias, os erros, tropeços, fracassos e, inevitavelmente, algumas conquistas.

Aqui, surge nosso primeiro filme-inquietação sobre esse encontro de linguagens: em Ricardo III – Um Ensaio (1996), Al Pacino se reúne com uma gangue que conta com nomes como Alec Baldwin, Kevin Spacey e Winona Ryder para nos presentear com um trabalho que fala sobre Shakespeare.

Porém, não é pura e simplesmente uma peça filmada, muito pelo contrário. Aqui, o ator-diretor pesquisa e vai a fundo nos questionamentos acerca dessa obra-prima do teatro mundial: entrevista outros colegas de profissão, filma suas tentativas, ensaios, levanta questionamentos e coloca em pauta certa aversão do público americano pelas peças do bardo.

Vale a pena pela imersão nos ensaios, pelas brincadeiras de pontos-de-vista e mesmo por aproximar, de certa forma, o espectador desse outro lado do processo artístico, ao qual ele não tem acesso.

De outra maneira, mas também brincando com o que é processo e o que é obra, também fazem O Olmo e a Gaivota (2014) e o brasileiro Vermelho Russo (2016).

No primeiro, vemos a história da atriz Olívia (Olivia Corsini) que ficou grávida e teve que se afastar de um trabalho durante nove meses, em decorrência de um problema com a gestação, enquanto a montagem da peça “A Gaivota”, de Tchekhov, continuava em curso.

No segundo, Marta (Martha Nowill) e Manu (Maria Manoella), duas atrizes brasileiras, mudam-se para Moscou com o objetivo de estudar o método Stanislavski e lá descobrem que sua amizade até então inabalável começa a ruir.

Perceba que em ambos os filmes, há um quê de vida real se misturando com ficção, a começar pelos nomes das personagens que são os mesmos das atrizes. No Olmo essa divisão é mais fácil de ser identificada, porque as escolhas da diretora são colocadas em cena, por meio de intervenções e cortes claros, diferentemente de Vermelho. O que da vida real verdadeiramente foi para o roteiro nós nunca vamos saber. E é essa a beleza da ficção, seja ela qual for.

Quando uma linguagem se apropria da outra, está se alimentando dela em todos os sentidos possíveis. Então, quando estamos diante de uma cinebiografia, uma releitura ou mesmo uma adaptação para o cinema, certos aspectos devem ser considerados. Ainda mais, quando falamos sobre um texto dramático.

Citamos Tchekhov e Stanislavski e, com sutileza, podemos encontrar as características desses dramaturgos expostas nos filmes acima. Falamos sobre Shakespeare – começamos por ele. E de alguma maneira inevitável, inexplicável, acabamos voltando para o bardo, mas para falar sobre duas estéticas completamente diferentes: Shakespeare Apaixonado(1998) e 10 Coisas que eu odeio em você (1999).

Juntei esses dois títulos porque me parece que para muito além da temática do amor-romântico, eles desmistificam o autor inglês, botam a mão no Shakespeare e fazem com que o cara seja deposto de seu pedestal de cult-intocável, tornando-o compreendido pelo espectador.

Shakespeare Apaixonado nos leva para a Inglaterra do Século XVI e nos posiciona de frente para um autor em crise criativa. Somos apresentados a William e sua vida, sua rixa com Marlowe, ao funcionamento de uma companhia de teatro, as maneiras da corte e a diversos personagens e plots das obras de Shakespeare. Tudo isso com um deleite estético: figurinos de Sandy Powell, direção de arte de Martin Childs e Jill Quertier, trilha sonora de Stephen Warbeck. Ainda temos uma sensível Gwyneth Paltrow, Judi Dench impecável no papel de Rainha Elizabeth e sete estatuetas: Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro, Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora.

De um lado, 7 Oscars. Do outro, um MTV Movie Award para uma performance arrebatadora de Julia Stiles. E o que raios eu estava pensando quando comparei uma coisa com a outra?

10 Coisas que eu odeio em você é pura comédia shakespeariana. Além de ser uma adaptação de “A Megera Domada”, é atrativa, tem música, tem conflito, acidez, histórias belas, humor e fala de questões humanas. É adaptado? É. É jovem? É. Sai da verborragia de pentâmetros iâmbicos? Sai. Mas traz o Shakespeare de volta pra gente.

A gente vive esquecendo que ele era um cara que escrevia para o povo. Revolucionou a língua inglesa, cobrava ingressos baratos e entuchava geral no teatro pra ver peças gigantes. Escrevia em colaboração com os seus atores, testando nos ensaios e vendo o que funcionava e o que não dava certo.

10 coisas não tem floreios, nem prêmios. E nem por isso deixa de ser menos importante. Uma boa adaptação é essencial para o primeiro contato do espectador com a Obra. Fruir com Heath Ledger cantando na arquibancada pode ser tão delicioso quanto ouvir Laurence Olivier declamando o famoso solilóquio de Hamlet, no longa clássico de 1948.

Do teatro-cinema para a dança-teatro, escolhi para finalizar a reflexão o filme Pina (2011). O que um filme sobre o trabalho de uma coreógrafa alemã faz no meio de um especial sobre teatro e cinema?

Pina Bausch foi expoente da dança-teatro. Suas coreografias são sinestésicas, altamente expressivas e dramáticas, no sentido de conter e contar uma história. Muitas vezes, somos pegos de surpresa quando confrontamos uma obra sobre a qual não temos certo entendimento ou não conseguimos decodificar tudo o que nos é apresentado.

À primeira vista, Pina pode ser algo desse tipo. Como Shakespeare. Como o teatro. E o cinema. E a vida. Mas, a certas coisas não nos cabe discernir, senão passar pela experiência com a percepção mais aguçada possível.

O cinema se guarda na retina.
O teatro, no coração.

Aqui, estamos falando sobre o efêmero. Por mais que possamos adquirir uma cópia digital do longa-metragem, rever uma peça de teatro, a experiência jamais será a mesma, pelo simples fato de que toda experiência tem um caráter irrepetível.

Por isso, cinema e teatro são tão eternos em sua efemeridade. Fascinam e encantam e continuam despertando a curiosidade de pessoas ao redor do mundo dia após dia.

Feliz dia Nacional do Teatro.