Quando assisti a Toda forma de amor pela primeira vez, as razões por eu escolhe-lo para o filme do final de semana eram basicamente por ele ter levado algumas indicações ao Oscar (Christopher Plummer venceu ator coadjuvante por esse filme) e por ter o Obi-Wan Kenobi de Star Wars, ou melhor, o ator Ewan McGregor, no elenco. Ao final, ele me afetou de uma forma totalmente diferente, mais potente do que eu imaginava, e se aninhou no canto mais quentinho do meu coração (sim, sou meio sentimental).

Além disso, considero esse como o último filme que assisti antes de me tornar de fato um crítico de cinema. O último que gostei pela “mensagem” do filme. Nos filmes seguintes, o olhar técnico sempre estava colado ao sentimental ou se sobrepondo à esse. A apreciação mudou de foco. Acabo assistindo mais numa tentativa de “desmontá-los”. Pelo bem ou pelo mal, esse é um caminho sem volta para nós que buscamos explorar a forma de fazer cinema. Continuamos gostando, é claro, mas o sentimento surge de outra forma.

Mesmo assim, nas vezes seguintes em que assisti, Toda Forma de Amor ainda traz uma carga de sentimentos que sempre acaba surgindo. Sentimentos esses que ganharam um novo viés quando perdi alguém próximo na minha família, de uma forma um pouco diferente, mas que despertou emoções próximas às sentidas pelo protagonista. Se antes eu me aproximava do filme por ter uma visão de mundo parecida da de Oliver (Ewan McGregor), agora, além disso, me sinto próximo à ele por ter vivido algo parecido. A relação se tornou mais real.

“E pessoas como a gente, metade delas acham que nada vai dar certo, e a outra metade acredita em mágica. É como se essas metades estivessem em guerra.” Anna

De maneira geral, o objetivo da coluna In Dica é sugerir um filme com um texto um pouco diferente de uma crítica de cinema “tradicional”. O meu desafio aqui, na verdade, vai ser um pouco maior que isso. Será indicar para você assistir Toda Forma de Amor sem te dar spoilers do filme e estragar as surpresas. Isso porque as coisas que mais me chamam a atenção estão justamente nas reviravoltas e na razão dele se chamar originalmente Beginners  (iniciantes, em tradução livre). Enfim, bora falar do filme.  (Ah, depois de assistir, vamos prosseguir o papo nos comentários ou mesmo, se quiser me chamar nas minhas redes sociais abaixo, tamo junto).

O conflito principal do longa gira em torno do personagem Oliver tentando lidar com suas emoções após perder o pai, Hal (Christopher Plummer), vítima de câncer. Antes de descobrir a doença e após ter perdido a esposa, Hal havia se assumido homossexual e vivido intensamente essa nova identidade. O que questiona Oliver, além do luto, é uma reflexão sobre a própria vida em si. Será que estou vivendo da melhor forma possível? Perder alguém próximo (como pude vivenciar recentemente) faz com que repensemos bastante nossa própria existência. Em meio a isso, Oliver conhece Anna (Mélanie Laurent), uma atriz que vive se mudando, e eles iniciam uma relação que soma mais um elemento a essa equação existencial.

Logo de cara, o filme já nos mostra, através de três planos, quais são os temas a serem abordados durante o longa. Basicamente é uma história sobre ausências e passagens. Destaquei os três logo a baixo.

A ausência do pai e todo o universo que o rodeava deixa Oliver sem um destino. Primeiro ele sente um misto de  surpresa e encantamento com as mudanças do mesmo após assumir sua sexualidade. Depois, com a doença, ele adota como sua única função na terra propiciar uma passagem tranquila, mesmo ele não tendo sido o melhor exemplo de paternidade durante toda a sua vida. Quando isso tudo termina, o que resta a Oliver? Como seguir em frente depois de viver ao lado de alguém que se dedica a viver o pouco de vida que tem com tanta intensidade? Não sei definir em uma palavra qual seria o sentimento. Acho que não seria remorso, mas algo como se surgisse uma pergunta gigante “será que tenho realmente aproveitado minha vida?”. Como disse anteriormente, a perda de alguém próximo nos faz refletir muito sobre nossa própria existência.

Diversos momentos do filme são construídos utilizando a ausência material, como forma de nos propiciar algum sentimento, alguma relação. Um dos momentos que acredito ser mais interessante é quando Oliver mostra sua casa para o cachorro Arthur (Cosmo), que pertencia a seu pai. A ausência de som, o caminhar dos dois entre os cômodos e a impossibilidade de uma comunicação direta entre homem e animal constrói um intenso sentimento de solidão. Que, ao menos nesse momento, não indica necessariamente tristeza.

É interessante que, a partir disso, o cachorro se conecta à Oliver e acaba se tornando uma espécie de consciência do protagonista, materializando o que se passa na cabeça dele. Ele parece ser aquela vozinha que habita dentro de nós e que nos questiona quando estamos sozinhos.

 Confesso que o cão é um dos personagens, se não o, que mais gosto nesse filme. Seu sarcasmo serve como um alívio cômico que despressuriza um pouco a tensão da narrativa. Aliás, queria saber se o diretor/roteirista Mike Mills também tem essa veia sarcástica na vida real, pois ela percorre o filme todo.

Esses vazios e ausências evocam também relações de comparação entre passado e presente, conflitos de geração e a memória. Inclusive, essa memória é posta em cheque em alguns momentos do filme. Por exemplo, quando o protagonista questiona a si mesmo sobre qual era de fato a roupa que o pai usava quando lhe contou que era gay. O diretor agregou a memória também à própria linguagem do filme. No making of, ele conta que nas cenas em que visitamos o passado por meio das lembranças de Oliver, ele utilizou a câmera fixa e nos acontecimentos do presente, câmera na mão. Isso, segundo o diretor, foi pensado porque quando visitamos alguma memória, ela tem uma certa “rigidez”, não é possível “olhar para o lado” e ele quis colocar isso em cena.

Toda essa reflexão acaba chegando na questão: O que será o futuro dos personagens? O momento de luto acaba sendo um refletir sobre “o que fazer da vida após estes acontecimentos?”, como disse anteriormente. Visto isso, em diversos planos do filme os personagens são enquadrados tendo portas como “molduras” das cenas. Simbolicamente, a porta significa a passagem entre duas situações ou dois mundos: o conhecido e o desconhecido. Tem, assim, o caráter de revelar algo. Atravessar uma porta é mudar de nível, de meio, de centro, de vida. Essa também é a abertura que permite entrar e sair e, portanto, possibilita a passagem.

Um último significado é construído utilizando-se de flores. Reparem que, durante o filme, elas surgem em diversos momentos, mas seu significado vai ser mostrado apenas nos momentos finais. Portanto, entro na perigosa zona de spoilers que não posso ultrapassar. Apenas repare nos momentos em que elas surgem e tente encaixar com seu significado ao final. Achei genial. Quer dizer, foi uma divagação que tive e que pra mim faz muito sentido (espero que para você também).

Aliás, o filme é boa parte autobiográfico. O pai de Mills assumiu sua homossexualidade pouco tempo após sua esposa falecer. Acredito que essa seja uma das razões do filme ser tão interessante. As melhores obras conhecidas, sendo cinema, música, pintura ou o que for, foram feitas tendo como ponto de partida algum sentimento muito intenso. Mais especificamente, algum acontecimento que tenha despertado essa emoção.

Em entrevista, Mike comenta sobre o uso de flores e a parte autobiográfica de Toda Forma de Amor.

Mike Mills, diretor e roteirista de “Toda Forma de Amor”.

Embora seja muito autobiográfico, no momento em que o escrevi, transformei em uma história, elenquei Christopher e todas essas pessoas, é uma história para mim; não é de 1 para 1. Para mim, fico mais consciente de que não é minha vida […]

As margaridas no final – há uma foto em preto e branco de margaridas. Essa é uma foto da minha mãe. Essa parte pode realmente me atingir. Um, isso me lembra da minha mãe. Dois, ‘Uau!’ eu coloquei algo incrivelmente íntimo e vulnerável nessa coisa muito pública. Quase me surpreende toda vez que está lá.

[…] Mas essas flores me dão um tapa na cara. Eles meio que me espreitam o tempo todo. Eu trabalhei tanto nas coisas do meu pai que me acostumei a pensar nisso como o estranho híbrido de pessoal e história.

A trilha do filme é basicamente composta por jazz antigo. Logo no início, toca uma música chamada Stardust, composta por Hoagy Carmichael e que foi regravada por diversos outros artistas como Frank Sinatra e Ringo Starr. Acho ela muito delicada e carregada da áurea evocada pela história. Me remete muito ao personagem Oliver, que é triste e romântico ao mesmo tempo. Imagino ele deitado no sofá da sua casa, lendo um livro, seu cachorro do lado e essa música tocando ao fundo, talvez numa vitrola.  Aqui tem a versão do filme, abaixo coloco o vídeo com a versão de Nat King Cole com legendas em português.

De forma geral, o filme mais levanta questões do que as responde propriamente. Inclusive, termina literalmente com uma delas. Deixa margem para nós, espectadores, tomarmos nossas próprias conclusões sobre o que acabamos de assistir. É um final, digamos, “meio aberto”. Ele aponta em uma  direção, mas corta antes de chegar em uma conclusão clara (faz sentido? Espero que sim). Acho isso interessante porque acaba nos fazendo refletir sobre os acontecimentos da nossa própria vida. Que rumos tomar e quantas vezes esse “desnorteamento” já aconteceu conosco. Comigo ao menos foram várias e várias vezes.

Sempre que termino de assisti-lo eu já quero ver novamente. Apesar de ter apontado algumas razões de eu ter gostado tanto, não é necessariamente isso que ocorre em minha cabeça quando os créditos sobem. É um sentimento que não sei explicar direito. É como aquela sensação boa que você sente quando está ao lado de alguém que você gosta muito, sabe? Alguém que te entende de verdade e que só um abraço dela já é o suficiente para fazer com que você se bem. O texto partiu de uma tentativa pessoal de destrinchar esse sentimento. Espero que ele te toque de alguma forma também. Depois retorne para conversarmos mais sobre.

Boa sessão.