Por Rafael Ferreira

Já se passaram mais de vinte anos, mas ainda me lembro da experiência que foi assistir Jurassic Park (1993) nos cinemas, pois foi nesta ocasião que o espírito cinéfilo despertou em mim, o ponto de partida para conhecer e me apaixonar pela sétima arte, o filme que me fez perguntar “Quem tornou isto possível?”. Steven Spielberg era o nome que sempre aparecia em minha busca (em jornais e revistas, pois até então não havia Internet), foi a partir do seu trabalho que pude compreender o quanto um filme pode mexer com o nosso lado emocional, como personagens que aparentemente não existem podem ser tão carismáticos e interessantes como nossos amigos reais, como um filme pode gerar um interesse e uma curiosidade por assuntos que normalmente eu não me importaria, como genética e ética, e como animais mortos a milhões de anos ainda causam fascínio.

Nesta ficção, cientistas trazem animais pré-históricos de volta à vida através da clonagem e da manipulação de genes, criados para serem atrações em um parque temático numa ilha no Pacífico. Antes de inaugurar sua atração, o empresário convida três especialistas na área, além de seus dois netos, num passeio pela ilha para avaliar o parque. Após uma pane, os dinossauros escapam e o grupo agora luta pela sobrevivência.

Antes de tudo, uma pequena aula de história: o primeiro fóssil de dinossauro foi descoberto na China há mais de dois mil anos atrás, porém, ninguém sabia do que se tratava e assim deu origem a lendas sobre dragões. Na Inglaterra, o primeiro fóssil foi encontrado em 1676, e pensava-se que se tratava de um fêmur de um humano gigante. Outros fósseis foram encontrados novamente na Inglaterra em 1815, um pedaço da mandíbula do que parecia ser de um grande réptil. Só em 1824, o britânico William Buckland associou o fêmur e a mandíbula e nomeou a espécie de Megalosaurus, que significa “grande lagarto”. Por fim, em 1842, Richard Owen, grande especialista inglês em fósseis, criou o termo “dinossauro”, que significa “lagarto terrível”, Owen foi intimado pelo marido da Rainha Vitória para construir modelos de dinossauros em tamanho real para colocá-los no jardim do palácio, e na véspera do ano novo de 1853, um banquete foi organizado dentro de um modelo de Iguanodon. Infelizmente em 1936, o palácio queimou num grande incêndio e somente algumas peças foram salvas. Este é um resumo da história do primeiro Parque dos Dinossauros.

Cinemascope - Jurassic Park1

Alguns modelos de dinossauros criados por Richard Owen. É possível vê-los no Palácio de Cristal em Londres. A última imagem ilustra o jantar presidido em 31 de dezembro de 1853, dentro de um dos modelos.

Para muitos, os dinossauros são o grande atrativo de Jurassic Park, mas eles aparecem apenas num total de 15 minutos do filme, deixando os outros 112 a cargo dos personagens, questões levantadas, e do roteiro. Mais de vinte anos após sua estreia, Jurassic Park ainda consegue manter o interesse do público?

Durante o filme, existe uma série de nuances que na maioria das vezes não percebemos conscientemente, mas são detalhes como estes que irei mencionar que mantém o roteiro coeso e deixam o filme interessante, é o que o faz funcionar sem precisar ter dinossauros o tempo todo na tela. Um destes artifícios é o contraste entre personagens.

Hammond (Richard Attenborough) defende a exploração da ciência, a manipulação genética sem se preocupar com a ética, um sonhador, já Ian Malcolm (Jeff Goldblum), o matemático convidado para o primeiro passeio pelo parque, tem um ponto de vista completamente oposto ao do anfitrião, com os dois pés fixos no chão, em seu argumento ele diz que o que Hammond chama de descoberta, ele chama de violação do mundo natural. O ponto de vista dos dois personagens é expresso numa cena expositiva durante um almoço, mas ela é expressa de outra forma ainda mais sutil, perceba que ambos os personagens usam roupas de cores opostas, Hammond usa roupas completamente brancas, e Malcolm usa roupas completamente pretas. Malcolm e Grant (Sam Neill) também são dois opostos, talvez não pelos ideais, mas pela vida que levam, desde o início o introspectivo Alan Grant declara que não gosta de crianças, não quer ter filhos, e não se dá bem com eles, do outro lado, Ian Malcolm diz ter três filhos, e ao contrário de Grant, Malcolm fala pelos cotovelos.

Mesmo que os personagens em Jurassic Park sejam arquétipos (o advogado sanguessuga covarde, o matemático moralista, o bilionário excêntrico, o programador obeso, a figura paterna, etc.), podemos ver um pouco de dimensão neles, um exemplo claro disto está na mesa de trabalho de Dennis Nedry (Wayne Knight), onde encontramos uma foto de J. Robert Oppenheimer fixada em seu monitor. Os avanços científicos desenvolvidos por Oppenheimer culminaram na invenção da bomba atômica. A foto do físico no computador de Nedry junto com um post-it escrito “Início do baby boom” diz muito sobre o personagem, ao mesmo tempo expressa o ponto de vista do autor do filme, de que os avanços científicos podem trazer resultados catastróficos.

Assim como o ato da clonagem, da forma irresponsável representada no filme, a bomba atômica também foi um avanço científico usado antes de se ter total conhecimento de suas conseqüências. E por falar em dar dimensão a um personagem, você já reparou que na cena em que os personagens encontram o Triceratops doente, Lex tropeça propositalmente para segurar a mão de Alan Grant? Pois bem, mesmo depois que ele a ajuda a se levantar, ela não solta a mão dele. Isso pode indicar uma paixão adolescente pelo paleontólogo.

Cinemascope - Jurassic Park2

O tema principal de Jurassic Park, em sua essência, é “homem vs. natureza”, isto não é abordado somente quando os personagens tentam sobreviver aos ataques dos dinossauros, é manifestado também através da tempestade que atinge a ilha, uma maneira de dizer que o ser humano é incapaz de controlar a força da natureza. A famosa frase dita por Ian Malcolm, “a vida encontra um jeito”, é o argumento do filme, embora eu não creia que isto seja verdade, no mundo real espécies são extintas pelas mãos do homem e o uso desenfreado dos recursos naturais pode trazer danos irreparáveis ao ecossistema, e nem sempre a vida encontra um jeito.

Existem vários filmes que mostram a ciência como algo mau, Frankenstein é o exemplo mais claro disso, onde um cientista brinca de Deus ao moldar uma criatura a partir de pedaços de cadáveres, e dá vida a esta criatura sem pensar na ética do que está fazendo. Como o catolicismo coloca, Deus criou o universo e tudo nele, Ele tem um plano para tudo no universo, mas se existe algo que está fora deste plano, é logo considerado imoral. Dr. Frankenstein alterou o plano de Deus ao desafiar a morte, Hammond também o fez.

Em Jurassic Park este motivo do cientista que brinca de Deus é apresentado de maneira sutil logo na segunda cena do filme: o advogado Donald Gennaro (Martin Ferrero) chega a uma mina de âmbar, não é à toa que o nome do local é Mano de Dios, ou seja, “Mão de Deus”. O filme explora seu ponto de vista expressando os horrores das ações humanas contra a natureza, que pode ser visto num mural atrás de Hammond enquanto este toma sorvete. O mural incorpora elementos de “Guernica”, a obra de Pablo Picasso que expressa os horrores da guerra. E por falar em arte, existe outra referência a outro artista no filme, logo após Alan Grant descobrir que os dinossauros podem se reproduzir constatando que Ian Malcolm estava certo, este surge numa pose que remete ao Adão sendo criado por Deus no afresco da Capela Sistina pintada por Michelangelo.

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Da esquerda para a direita e de cima para baixo: (Foto 1) Gennaro Donald estendendo a mão para alcançar Juanito em Mano de Dios; (Foto 2) Hammond e Ellie tomando sorvete, ao fundo o mural com elementos de Guernica; Abaixo vemos as comparações entre a Guernica de Jurassic Park e de Pablo Picasso, e a comparação entre a pose de Ian Malcolm e Adão.

Para manter a coesão, o roteiro de Jurassic Park lança mão de uma tática que consiste em combinar uma ação anterior com outra posterior, desta forma é possível antecipar o que acontecerá com os dinossauros se nos atentarmos para Alan Grant. A primeira frase dita pelo paleontólogo é “Odeio computadores.” ao que a Dra. Sattler (Laura Dern) responde “O sentimento é mútuo”, ou seja, “os computadores também o odeiam”, ele terá motivos para odiar computadores ainda mais quando souber que a pane no parque foi causada por um apertar de botões no computador, e que o hacker Dennis Nedry usou um programa de computador para impedir que Ray Arnold (Samuel L. Jackson) decifre o código e religue o sistema. Mais uma vez, o filme expressa seu ponto de vista de que a tecnologia é uma coisa ruim.

Ao chegar à Ilha Nublar, Alan tem dificuldade em afivelar seu cinto de segurança, enquanto todos os outros passageiros já o fizeram. Ele tem duas pontas iguais que não se conectam, duas pontas “femininas” se considerarmos que a outra ponta, a que penetra, seja a ponta “masculina”. Grant resolve seu problema amarrando-as, uma metáfora para a alteração dos cromossomos dos dinossauros para que todos os indivíduos sejam fêmeas e impedi-los de se reproduzirem. Esta cena nos mostra que assim como Dr. Grant encontrou um jeito unindo duas pontas femininas, “a vida encontra um jeito” e os dinossauros podem se reproduzir mesmo tendo apenas cromossomos femininos.

Mais sobre reprodução, Grant e Ellie formam um casal, mas em momento algum é dito qual a relação entre eles. Namorados? Noivos? Ou um casal moderno dos anos 90 que não cria laços? Talvez ele não assuma este compromisso porque não quer ter filhos, assim como os dinossauros da Ilha Nublar, mas estes acabam botando ovos, e Grant se afeiçoa com os netos de Hammond após salvar a vida deles, a partir daí, a idéia de ter filhos parece mais aceita.

Durante o tour inicial no qual Grant, Malcolm, e Sattler assistem a um vídeo que explica como os dinossauros foram criados, os três cientistas escapam para poderem presenciar o nascimento de dinossauros. Em seguida, Grant salta de um carro em movimento para poder ver de perto um Triceratops doente. Estas duas cenas onde Grant “foge” do tour premeditam a fuga dos dinossauros.

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Jurassic Park faz referência ao clássico de 1933, King Kong, porém, o que poucos percebem é que a obra de Spielberg também faz uma homenagem a um clássico anterior ao filme de Merian C. Cooper, o dinossauro animado no vídeo explicativo que dá início ao tour é um tributo à Gertie de Winsor McCay de 1914.

Jurassic Park carrega um discurso naturalista, a cena final em que Grant sorri ao ver pelicanos voando próximo ao helicóptero representa a evolução das espécies, ele parece otimista ao ver o quanto os dinossauros evoluíram, refletindo em si próprio, uma mudança em seu comportamento surgiu com esta experiência, isso mostra o quanto o ser humano ainda terá de evoluir. Avanços tecnológicos são sempre bem-vindos, desde que tenham o propósito de nos ajudar nesta evolução. Muitas coisas mudaram desde que o filme foi feito, principalmente no que diz respeito à tecnologia, agora que atingimos este nível, talvez seja a hora de voltarmos nossos olhos à natureza novamente para que enfim “a vida encontre um caminho”.