Quando eu era um teenager e a MTV ainda era um bom ponto de referencias e descobertas musicais, assisti ao clipe Gold Lion da banda Yeah Yeah Yeahs, que fazia parte do seu segundo álbum de estúdio, Show Your Bones (2006) e fiquei louco. Primeiro fiquei surpreso por conhecer uma banda que só tem três integrantes e faz um som tão bom quanto aquele. Segundo, pelo som que me remetia a We Will Rock You do Queen. Mas, aqui tínhamos como diferencial uma certa quebra de ritmo, uma virada da bateria que fugia um pouco do clássico, além da característica voz de Karen-O. Terceiro, o clipe com uma estética dourada com várias performances da vocalistas e instrumentos destruídos alimentando a fogueira no meio da noite num deserto. O Cleiton Lopes de 17 anos, recém chegado ao mundo do rock, pirou o cabeção.

Anos mais tarde, em 2012, a vocalista da banda também emprestou sua voz para a abertura do filme Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de David Fincher. Na sequencia, ela canta Immigrant Song, da banda Led Zeppelin. A nova versão tem a presença de batidas eletrônicas e toca sobre a imagens de cabos de informática, tatuagens de dragão e demais elementos da trama do filme.

No ano seguinte, a banda iria lançar o disco Mosquito (2013) e, para promovê-lo, lança o clipe da faixa Sacrilege. Nessa época, eu estava no meio da faculdade de cinema e fiquei embasbacado com a produção. Assisti ao vídeo várias vezes e queria que todo mundo da minha sala visse (acho que fui até um pouco chato). O motivo era que o clipe era “simples” e muito bem executado. Além disso, durante o curso, nós tínhamos que semestralmente produzir ao menos um curta metragem e parecia uma tarefa quase impossível (ao menos no nível de sair algo “assistível”).

Pensando nisso, de estar num curso que me proporcionava entender um pouco mais do processo de produção de um produto audiovisual, aquilo parecia, aos meus olhos, ser a oitava maravilha do mundo. Obviamente o clipe envolvia mais dinheiro e tinha mais equipamentos, mas, com um jeitinho, eu via que era possível reproduzir algo do tipo mesmo com pouca grana.

Se não conhece a banda / clipe, confere ai em baixo pra gente conversar depois:

Cada pessoa com quem eu discutia o vídeo, via uma coisa e interpretava a história de um jeito diferente. Teve gente que até ficou em dúvida se a história estava de trás para frente mesmo (você percebeu isso, né?).

A primeira coisa que o vídeo me remeteu foi ao filme Amnésia, de Christopher Nolan, em que vemos a história de um homem que a cada dia esquece os acontecimentos do dia anterior. Como forma de lembrete, ele tatua dizeres pelo corpo. O filme é todo montado de trás para frente, em que assistimos primeiramente à última cena do filme e vamos em direção a primeira.

No caso do clipe, a minha interpretação inicial era que a história toda se passa na cabeça dos convidados do casamento. Vemos os desejo carnais secretos de cada um dos personagens durante a cerimônia. O que seria o sacrilégio (que significa profanar objetos, lugares e pessoas que apresentem caráter sagrado) que dá nome à música/clipe. Afinal, estamos numa igreja, no meio de um casamento.

Na minha interpretação, o final (com dois sendo queimados na fogueira) é a história que passa na cabeça do padre. Enquanto as versões de cada um dos convidados não tem uma ligação clara, a do padre reúne a todos. De como ele seria tratado pelos demais membros da sua comunidade caso cedesse à tentação. Isso potencializado pelo cenário em que a história se passa. Uma cidade do interior onde, na maioria das vezes, os valores religiosos são muito mais fortes do que em uma metrópole, por exemplo.

Mas a interpretação, digamos, mais “correta”, seria uma mulher adultera que, mesmo após o seu casamento, continua tendo encontros com outras pessoas da cidade que estiveram presentes em sua cerimônia, incluindo o padre. Vi que estava me equivocando (apesar de eu achar a primeira interpretação mais interessante) quando em um dos planos, vemos a aliança no dedo da moça. Um possível indício de que toda a história se passa após a cerimônia.

Plano mostrando a aliança na mão esquerda da moça, indicando que as cenas se passam após a cerimônia de casamento.

Partindo deste plot twist que rolou na minha cabeça, ao perceber essa aliança, fiquei pensando em como a composição dos quadros do clipe ajudava a contar a história. Coisas que não percebíamos talvez, de forma consciente, mas que, de alguma forma, criava um sentido em nossa cabeça. De que forma isso, junto à montagem que é o grande diferencial aqui, nos causava curiosidade, susto,tensão e outros sentimentos? Separei então alguns quadros do filme, aliado à alguns conceitos de linguagem cinematográfica, para tentar entender de que forma isso tudo funcionava.

Partindo do princípio, o primeiro plano usado no clipe é chamado de “Plano Geral”. Ele busca mostrar o cenário em sua totalidade. As figuras humanas têm um espaço reduzido na tela e o objetivo maior é mostrar o ambiente em que tudo se passa. Um exemplo, está no filme Pulp Fiction: Tempo de Violência, de Quentin Tarantino, e a famosa cena em que John Travolta dança com Uma Thurman numa lanchonete. Nesse quadro temos um plano geral que nos mostra o ambiente em que a cena se passa, a dança dos dois e a reação das pessoas ao verem os dois dançando. Elementos que são importantes para os rumos da cena que termina com os dois sendo premiados pela apresentação.

John Travolta e Uma Thurman na cena clássica de Pulp Fiction, filmada em plano geral

No caso de Sacrilege, achei interessante que o primeiro plano do filme já indica uma tragédia. Olhando mais detalhadamente, o primeiro item que traz essa sensação é uma concentração de pessoas. Quando você está andando pela rua e vê uma multidão, a primeira coisa que vem à cabeça, infelizmente é: tragédia. Aconteceu algo de ruim. Um atropelamento, assalto ou algo do tipo. O segundo é a fogueira. Fogo geralmente não é bom sinal. Ainda mais numa dimensão que chega à ser mais alto que uma pessoa, como no caso deste quadro. As pessoas ainda estão de costas para as chamas indicando que não há nada mais que possa ser feito. E por último, a arma de alto calibre e quem à empunha. Mesmo na silhueta é possível identificar um guarda americano portando uma arma. Indício que o acontecimento foi algo realmente sério,que envolveu até autoridades policiais. O plano vai abrindo ainda mais e a teoria é confirmada pela viatura estacionada no local escrito “Sheriff” na lateral. E o toque final é que não conseguimos ver, nesse primeiro momento, os rostos dessas pessoas. O clipe parece fazer um convite para que nós acompanhemos a história de quem são essas pessoas e como chegamos até ali.

Quem são esses personagens neste cenário sinistro? Bora saber.

 

Um elemento que agrega bastante à obra é a escolha da atriz que vive a protagonista. Lily Cole tem traços únicos que a deixam com um ar angelical. Ela começou sua carreira como modelo depois atuou como atriz participando de filmes como O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus e Branca de Neve e o Caçador. 

Representação de Ninfas e um Sátiro.

Acredito que a escolha foi por seu aspecto remeter às chamadas ninfetas, cujo o nome é derivado de Ninfa, que são seres da mitologia grega que representava o dom de fertilidade da natureza e frequentemente alvos de sátiros, que são seres metade humano, metade bode (agora que peguei uma das referências da animação Hercules, da Disney em que o treinador do herói, que é um sátiro, corre atrás de uns seres que não sabia o que era. São ninfas).

Ninfeta, é o termo usado para garotas sexualmente precoces. Um exemplo clássico da cultura pop é o livro Lolita lançado em 1955 do escritor Vladimir Nabokov. No cinema teve duas versões, uma dirigida por Stanley Kubrick em 1962, e um remake de 1997 dirigido por Adrian Lyne (se ainda não viu nenhum, escolha o do Kubrick. O remake não chega nem perto). Tanto as atrizes dos filmes quanto a do clipe, trazem essa certa “áurea” de ninfa. Lily ainda é ruiva o que acelera ainda mais meu coração… Digo, compõe ainda mais o visual da moça.

 

 

Contudo, muitas vezes alguns elementos postos em cena, fogem ao nosso entendimento imediato. Por exemplo, eu, e provavelmente você que está lendo esse texto, estamos mais acostumados à figuras religiosas relacionadas ao cristianismo. Portanto, quando vi a máscara posto no rosto do padre, imediatamente relacionei à figura do diabo que conhecemos de chifres e pele vermelha. Mas, resolvi investigar e estava errado, ao menos à primeira vista.

Na verdade a máscara representa um Tengu, uma figura sobrenatural originalmente chinesa que foi levada para o Japão pelos monges budistas. Entre os séculos IX e X, eram conhecidos como demônios da montanha que amedrontavam as pessoas como fantasmas e as enganavam para que entrassem nas montanhas e as possuíssem. Tudo que acontecia de anormal e misterioso, eles eram os culpados. Nos Séculos XI e XII eles costumavam enganar os monges tornando a forma de buda ou os levando para o lado deles lhes dando poderes. Com o passar dos anos, foram atribuídos a ataques a pessoas comuns as causando cegueira. Segundo as lendas, também existiam Tengus bons que viviam nas florestas e só atacavam os humanos que destruíssem a natureza.

Durante certo períodos, e que parece ser o caso em que a máscara se encaixa no contexto do clipe, seu comprido nariz foi atribuído com conotação hora cômica e hora sexual.

 

Pensando no contexto do clipe, colocar a máscara de Tengu no padre, a primeira vista parece colocar como o único pecador da cidade ou que deve ter a punição mais severa, junto com a moça que foi “cúmplice” do pecado. Num segundo momento, parece significar colocar sobre seus ombros, todo o peso dos pecados dos demais moradores da cidade. Fiquei pensando aqui, não sei exatamente por que, se os moradores da cidade sabiam que a moça tinha relacionamento com os demais ou será que ela estava sendo condenada “apenas” por dormir com o padre?

Padre como simbolo de pecado

Agora pensando no plano como um importante elemento da montagem, vamos utilizar dos estudos de um dos principais teóricos do cinema Sergei Eisenstein. Em um dos seus textos, ele fala do choque de dois planos que geram uma ideia, na chamada Montagem Intelectual. Segundo as palavras do próprio, Eisenstein:

“Uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (…) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à ideia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes”.

No clipe temos dois momentos que gostaria de destacar, em que essa montagem é usada. Primeiro no trecho em que o padre é assassinado. No primeiro plano, vemos o padre (que até então não sabíamos que era padre) sendo atingido por algo que mancha sua camisa. No primeiro momento não fica claro o que é. No segundo vemos o xerife com uma arma na mão. A junção dos dois planos gera uma terceira ideia: assassinato. O padre foi assassinado a queima roupa pelo xerife da cidade. A primeira reação ao ver um cara de máscara é achar que ele é um bandido ou algo do tipo, nos planos seguintes que entendemos que faz parte da forma de “fazer justiça” dos moradores da cidade. O assassinato não está descrito nos planos isolados. A junção dos dois que gera esse terceiro sentido ao vídeo.

Padre é atingido.

 

A cara do assassino

Um segundo momento que achei interessante e gostaria de destacar, é quando descobrimos que o amante na cama da protagonista é um padre. Primeiro vemos a moça acolhendo um rapaz em uma cama. Como assistimos a história de trás para frente, esse plano é precedido pelos dois aos beijos nesse ambiente. Em seguida, vemos o momento anterior a esse em que a moça tira a roupa dele e temos o vislumbre do item em seu pescoço que indica ele ser um padre. Os dois planos são praticamente idênticos, o elemento causador do impacto é justamente o elemento da batina que o padre usa. O choque dos dois planos indica: sacrilégio. Mais uma vez, uma ideia que está contida não em um plano específico, mas no choque entre os dois.

A moça acolhe seu amante na cama.

Opa! Perai. Esse cara é padre? Sacrilégio!

O vídeo foi dirigido pelo coletivo francês Megaforce que já fez clipes para bandas como Two Door Cinema Club, Tame Impala e Rihanna. Navegando pelas interwebs a procura de informações sobre Sacrilege, encontrei uma versão em que foi feita a montagem “na ordem certa” do clipe. Começando pelo casamento e indo em direção à execução na fogueira. Não faz muito efeito por que vemos uma história “normal” de traição. O surgimento dos elementos que causam surpresa em nós, como descrevi alguns anteriormente, aqui se perdem. Além disso, a montagem original ainda segue o ritmo da música, que faz a interação com as imagens, como na cena que o policial bate a casa que o padre está com a moça. A imagem encaixa certinho com o som da bateria na música.

Confere aí como seria sem a montagem inversa.

Bom, esse clipe tem mais um monte de coisas que dá pra falar a respeito, mas preferi não me alongar muito. Acho que o que foi escrito até aqui, já é o suficiente para traçar um olhar diferenciado sobre a produção e explicar um pouco sobre a linguagem cinematográfica empregada.

Como bônus, criei uma playlist com músicas do Yeah Yeah Yeahs ou da vocalista Karen-o, que participaram da trilha sonora de diferentes filmes. Tem de Onde Vivem os Monstros, Ela e ainda algumas que adicionei pensando que encaixariam bem em cenas de filme. Músicas que sempre que ouço, imagino que algum clipe poderia ser realizado em cima deste.

Pode ouvir e comentar a vontade abaixo que não é pecado algum.