Em tempos de redescobrimento do cinema clássico, eu vos apresento uma obra que merece ser vista, revista, e estudada. Ménilmontant é um média metragem francês de 1926, escrito, dirigido e produzido por Dimitri Kirsanoff.

O título foi tirado de uma vizinhança em Paris, próximo à 20e arrondissemant, originalmente uma pequena comunidade dentro dos arredores das muralhas que, em 1860 foram absorvidas na grande Cidade da Luz. O nome deriva de Mesnil Mautemps, mesnil é uma forma elegante da palavra maison, que significa “casa” e mautemps é uma palavra cognata que significa “mau tempo”, portanto: “Casa dos maus tempos”. Por volta do século XVI, a vizinhança passou a ser chamada de Mésnil Montant, devido à topografia do lugar – a palavra montant significa “escalada”, ou uma sequência numérica que se eleva – e pelo crescimento demográfico do lugar. No século XVII, o local em questão abrigava famílias mais pobres, trabalhadores braçais, e por estar além dos limites da cobrança de impostos, o vinho era mais barato, resultando na abertura de inúmeros bares. Esta contextualização foi feita para quebrar o conceito de uma Paris linda, a cidade que vemos em Ménilmontant é decadente, mostra pobreza, abandono.

Acima: imagem do Google Maps mostrando a região em Paris. Atente para a quantidade de bares e restaurantes, e o museu da Édith Piaf; Abaixo: uma foto de uma das ruas da vizinhança, não muito diferente de uma rua em uma cidade histórica no Brasil.

Como disse antes, é tempo de redescobrimento do cinema clássico, e antes de dar continuidade ao texto, eu sugiro uma pausa para assisti-lo. Dificilmente será encontrado em DVD, mas o Cinemascope te dá esse presentinho: o filme completo no vídeo abaixo. Ah, antes de assistir, devo avisar que vai ser uma experiência bem forte, que como o nome sugere, escalona. OBS: este filme faz parte de uma coletânea lançada em DVD chamada Cinema Avant-Garde, presente no volume 2, fica aqui o meu apelo para o relançamento desta coleção.

Ménilmontant é uma aula de cinema, essencial para quem quer estudar cinema, se destaca dos demais em sua época (e atuais) por não possuir cartelas, uma ferramenta utilizada nos filmes mudos, aqui a história é toda narrada de forma visual. Reza a lenda que ao ser exibido na Bélgica, cartelas de texto foram inseridas sem o consentimento do diretor.

O filme começa com um homem sendo brutalmente assassinado a machadadas. Em seguida vemos duas crianças brincando e, a felicidade delas é interrompida quando veem uma multidão de pessoas. A cena seguinte se passa num cemitério, onde vemos as frases “A notre pére” e “A notre mére” em duas cruzes. Sozinhas, mesmo impactantes, estas cenas não dizem muita coisa, mas juntas nos informam que o homem assassinado é pai das duas meninas, e a cena no cemitério nos dá a informação de que a mãe já havia falecido. As duas agora têm apenas uma à outra.

Vemos uma rua em movimento (passando pelo Rio Sena), carros, relógio, e duas mulheres confeccionando buquês de flores. A rua em movimento e o relógio são uma metáfora para a passagem de tempo, os veículos nos dizem que a modernidade chegou. E as duas garotinhas agora se tornaram mulheres. Se antes elas colocaram flores nos túmulos de seus pais (e estas murcharam), agora elas fazem buquês numa floricultura. Ao fim do expediente, as duas saem do movimentado centro de Paris para a sua periferia decadente, o contraste visual é perceptível quando vemos o esgoto correndo por um beco.

No caminho de casa, a irmã mais nova se encontra secretamente com um rapaz, a irmã mais velha se sente enciumada, triste, ela volta sozinha para casa. Na cena seguinte, vemos que as duas irmãs são tão unidas que dividem a mesma cama, um plano do calendário nos mostra que é domingo, último dia da semana na França, quando a semana morre para começar novamente, nos dá uma ideia de que algo irá morrer, para começar outra.

Neste domingo, a irmã mais nova se encontra com seu interesse amoroso, deixando a irmã mais velha a sós. Sua ausência é representada pelo vazio em seu lado da cama, a cena é intercortada com planos mostrando um gato, e pernas andando, através do Efeito Kuleshov podemos fazer a seguinte leitura: se você cria gatos, sabe que de vez em quando ele dá aquelas escapulidas, andando pra lá e pra cá (plano das pernas), e você se pergunta “por onde será que ele anda?”, pois é exatamente isto que a irmã mais velha está pensando neste momento. As ruas vazias nos diz que ela não está em lugar algum, frames de cenas de sexo nos diz o que ela pode estar fazendo, já que ela sabe do relacionamento secreto.

Enquanto o rapaz dorme, a irmã mais nova sai para espairecer às margens do Sena. Ela contempla momentos da sua infância, tempos de inocência, mas alguma coisa falta nesta memória, a irmã. Ela desce um degrau que leva ao rio, para pôr um fim neste sofrimento, mas recua. O que a levou se afastar da irmã? O que a levou a contemplar suicídio? Não há uma resposta fácil para essas perguntas, a conversa no parque naquela manhã de domingo sugere que ela abrira mão da irmã para ficar com o homem, e ao ver que ele não era tudo aquilo, sentira vergonha de si própria. Enquanto passa num beco, faz uma marcação num muro (uma sequência numérica que se eleva) e vemos que se passaram 13 dias.

A irmã mais velha anda por becos desertos, passa por um desenho de um coração perfurado por uma flecha, símbolo do amor proibido, dolorido. O coração desenhado no muro também funciona como um marco, um ponto de encontro, ente o homem e a irmã mais velha, que agora têm uma relação, o desenho do coração agora possui outra conotação, representa aquilo que a irmã procura: um amor. Já que não tenho mais uma irmã, por que não dedicar meu amor a um homem? Ao ver a cena, é a irmã mais nova quem fica de coração partido. Ela tenta impedir a irmã mais velha de subir ao quarto dele, por ciúmes? Ou uma alerta?

Depois de se ver sem irmã e sem namorado, vemos a personagem em frente a uma maternidade, os poucos dias que ela passara junto com o homem foram suficientes para engravidá-la, e agora sem casa, sem poder contar com a irmã, ela tem uma nova preocupação, a criança que colocara no mundo.

Ela caminha novamente às margens do Sena, com seu bebê nos braços. Planos mostrando a sua feição preocupada, a água, e o bebê chorando, sugerem que naquele momento ela pretende jogá-lo no rio – A expressão de pavor da criança nunca será apagada da sua memória, faz dez anos que vi este filme pela primeira vez, e nunca esqueci desta imagem – No fundo do poço, sentada num banco de praça ao lado de um mendigo, ela pensa em todo o conforto que nunca tivera, uma mesa posta, uma torneira para se lavar, uma lareira para se aquecer. Por que ela pensa naquilo, uma vez que já foi estabelecido que ela não tinha todo esse conforto? Possivelmente estas foram as promessas feitas pelo homem.

O mendigo que divide o banco com ela come um mísero pedaço de salame, e a oferece um pedaço de pão, outra cena de partir o coração, isso mostra como nos momentos mais difíceis a ajuda pode vir de onde menos esperamos, para nós espectadores mostra o poder da compaixão.

A cena seguinte nos mostra uma mulher seduzindo um homem e o levando ao seu apartamento em um “Hotel”, ela está se prostituindo. Nesta cena, o diretor toma o cuidado de enquadrar os personagens do pescoço para baixo, este tipo de enquadramento foi utilizado anos mais tarde por engano num filme boliviano, por isso, dá-se o nome de “plano boliviano”, o enquadramento que no filme latino-americano foi um acidente, aqui a intenção é proposital, não devemos ver o rosto da mulher.

Somos apresentados a uma terceira mulher, na mesma situação da protagonista, exceto que esta não é mãe solteira, a pobreza a leva a beber restos dos copos deixados pelos clientes. Ao passar a mão pela mesa, temos a impressão de que ela irá pegar uma bituca de cigarro, o que seria ainda mais “fim de carreira”. Quem é esta mulher? O que aconteceu para ela estar nesta situação?

Desamparada, num beco escuro, a moça reencontra sua irmã mais velha, elegante, com todo aquele conforto que ela desejava, de salto alto sobre a lama, como se isso a elevasse (novamente remetendo à ideia de montant), ela era a moça que se prostituíra anteriormente. As duas irmãs se reencontram e se reconciliam, e paralelamente, a moça que bebia dos restos dos copos reencontra o homem, que a deixou naquele estado, resultando num confronto corpo a corpo, terminando com a morte dele, de forma brutal. Nesta cena o diretor faz vários cortes, o fato de não vermos a ação deixa a cena mais intensa, não perde em nada para as cenas de conflito do cinema atual. Isto me faz pensar na seguinte questão: Qual foi o motivo da discussão que levou a morte do pai das duas meninas?

O filme inicia com uma morte violenta por causa de uma discussão, e termina da mesma forma; vemos três moças que foram seduzidas pelo homem, duas delas tiveram o mesmo destino, as ruas, e uma foi levada à prostituição; o homem, está sempre a procura de uma mulher ingênua a quem seduzir e, por falta de um termo melhor, lhe tirar a dignidade, se não fosse morto, levaria mais mulheres àquela vida. Não há uma única forma de ler este filme, deixá-lo aberto a interpretações é o que o engrandece. Sem dizer uma única palavra, o filme nos faz refletir sobre como os problemas parecem sempre escalonar.