Desde sua criação, há mais de 120 anos, o cinema brasileiro sempre sofreu entre altos e baixos. Mudanças políticas e econômicas tendem a abalar fortemente sua estrutura, especialmente em momentos nos quais a indústria dá sinais de que pode se fortalecer e consolidar. Atualmente, é possível dizer que vivemos um momento otimista dentro do audiovisual nacional. Para dar um parâmetro, podemos citar os casos de O menino e o mundo, de Alê Abreu, vencedor do Prêmio Cristal de melhor animação no Festival de cinema de animação de Annecy, na França, Que horas ela volta?,  de Anna Muylaerte, eleito um dos 100 melhores filmes pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Abraccine, ou Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, destaque nos principais festivais de cinema do mundo, como o Festival de Cannes. Infelizmente, porém, tudo leva a crer que 2019 pode marcar mais uma pausa dentro de algo que vinha caminhando rumo a um maior reconhecimento.

No dia 18 de abril, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) anunciou que suspendeu os repasses de novas verbas para produção de filmes e séries, paralisando as atividades da entidade. A Ancine chegou a encaminhar ao Tribunal de Contas da União (TCU) um recurso para que a paralisação fosse suspensa, porém, o tribunal rejeitou e a decisão será mantida. De acordo com o TCU, a medida partiu da própria agência e solicitou a mesma que explique os motivos que levaram a tal decisão. Em um clássico jogo de empurra, pouco foi esclarecido e o que se sabe é que o resultado final de processos em andamento, a publicação de novos contratos e o encaminhamento de novos pedidos para aprovação de verba estão suspensos por  prazo indeterminado. Só poderão obter os recursos do Fundo Setorial Audiovisual os contratos publicados até 18 de abril.

Pouco depois, no dia 24 de abril, o Ministério da Cidadania anunciou novas regras para a famosa Lei Rouanet, a lei responsável por permitir a projetos culturais captar patrocínio junto a empresas – que têm como opção abater parte ou todo o valor do seus impostos em contrapartida. Com isso, o governo abre mão de recursos para que o setor privado invista diretamente no mercado cultural. A maior mudança está no teto de captação que cada projeto pode ter: de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. Apesar de afetar mais brutalmente a produção de musicais – que vinha presenciando um crescimento nas últimas décadas e tinha mais de 15 montagens nas listas de principais captadores – o corte atinge a cultura de modo tão intenso quanto e representa mais um baque em uma área ainda tão subvalorizada no Brasil.

Em uma triste coincidência, o anúncio da Ancine saiu justamente no mesmo dia em que o Festival de Cannes divulgou que quatro longas brasileiros estão entre os selecionados para a edição 2019.  Na corrida pela Palma de Ouro, principal prêmio da competição, estão Bacarau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e O traidor, do italiano Marco Bellocchio. Na mostra Um certo Olhar concorrem A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Ainouz, e Port authority, de Danielle Lessovitz.

Ao tentar encontrar um motivo que justifique a remoção de investimento em um setor que impacta tão profundamente no país – seja como gerador de empregos ou como ferramenta para a reflexão e construção de uma identidade nacional – não encontrei. Em uma rápida pesquisa, descobri que, em 2017, o Brasil registrou seu maior número de títulos lançados. Foram 160 longas nacionais, o maior desde 2019. Naquele ano, a renda nas salas de cinema teve um aumento de 4,6% no total bruto. Essas informações estão no Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, divulgado pela própria Ancine. Em 2018, fechamos o ano com o maior número de salas de cinema desde 1975. O crescimento anual gira em torno de 9% e a participação no Produto Interno Bruto (PIB) alcançou 0,46% em 2016 (parece pouco, mas supera poderosas como a indústria farmacêutica) E não apenas isso: houve um crescimento no público de 25,3% em relação a 2017.

Em um balanço divulgado pelo próprio Ministério da Cidadania em 6 de fevereiro, “as obras brasileiras voltaram a ultrapassar a marca de 20 milhões de ingressos vendidos, o que só havia acontecido nos anos de 2010, 2013, 2015 e 2016. A participação de mercado do filme brasileiro fechou o ano em 14,4%, um resultado bem acima do ano anterior (9,6%)”. E isso que estamos nos focando somente nos números do cinema. Quando se fala em audiovisual, há muito mais envolvido e muita, muita mão de obra trabalhando.

No Cinemascope, a preocupação e o carinho com as produções nacionais são constantes e isso se reflete em cada conteúdo que colocamos no ar. Seja por meio de vídeos, cursos ou indicações, o objetivo aqui é sempre jogar luz às produções nacionais e mostrar que tem qualidade, diversidade e muita coisa boa sendo feita por aqui e não é de hoje. Só para dar um exemplo, em 2016 lançamos a CINEMA BRASILIS uma série composta por 12 vídeos e apresentada por Donny Correia, cineasta e pesquisador de história do cinema pela USP.  Cada episódio trouxe uma abordagem bem dinâmica sobre determinada época do cinema nacional, desde a origem, no século XIX, até os dias atuais. E o que isso tem a ver com a crise na Ancine e tudo o que eu comentei lá em cima? Tudo. O crescimento de um país passa pela cultura e o audiovisual, no nosso caso mais específico, o cinema, faz parte disso.

Como geradores de conteúdo e cinéfilos apaixonados, é doloroso acompanhar, mais uma vez, o nosso cinema sofrer os baques de um governo que não vê nele importância. É difícil acompanhar cada corte e se manter em silêncio. Recentemente, enquanto trabalhava em um artigo sobre a participação feminina no cinema, comecei a pensar de que forma é possível realmente honrar às memórias dessas mulheres esquecidas pela história. Hoje, ao pensar no nosso cinema, me vem a mesma questão e, curiosamente, a resposta segue a mesma: fale a respeito, conte, compartilhe, mostre dados e faça com quem você conheça chegue aos motivos de por que essa é uma indústria fundamental que não pode ser abandonada. Porém, mais importante do que tudo isso, assista filmes brasileiros. Afinal, não há como alguém defender aquilo que não conhece, certo? Então, de amante de cinema para amante de cinema, prestigie as nossas produções, comente sobre aquele filme bacana com os seus amigos, divulgue as nossas obras e, principalmente, não deixe o nosso cinema morrer.

PS: em uma tentativa de aproximar o público e fazê-lo enxergar o que faz dessa indústria um patrimônio que deve ser defendido e preservado, as empresas da Indústria do Audiovisual Brasileiro se uniram em um pequeno vídeo que entrega uma noção de tudo aquilo que envolve esse nicho, vale a pena conferir: