Muito mais do que musa do Cinema Marginal, a baiana Helena Ignez é uma das maiores atrizes do Brasil e tem firmado seu nome como uma diretora de filmes poéticos e autorais. Por viver na efervescente cena cultural do país nas décadas de 1960 e 1970 ela conheceu gigantes como Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, de quem foi companheira de vida. A convivência com estes e outros profissionais foi essencial para que Helena desenvolvesse as ideias que pratica hoje em seu cinema.

Após produzir documentários, longas e curtas, chega agora às telonas A Moça do Calendário, seu sétimo trabalho como diretora. No filme acompanhamos a história de Inácio (André Guerreiro Lopes), um homem de meia idade que não possui emprego fixo e vive de dois bicos: mecânico durante o dia e dublê de dançarino durante a noite. Entre uma atividade e outra, Inácio desenvolve um relacionamento platônico com a moça que ilustra um calendário na oficina (Djin Sganzerla). O quarentão questiona ainda o regime proletário em que vive, a política do país e as injustiças sociais.

Aqueles que estão acostumados com o cinema tradicional podem estranhar o estilo da diretora. Nessa nova produção, Helena mistura montagem discursiva e de correspondências e o resultado é completamente diferente do habitual. Graças à mistura, não existe uma linearidade temporal clara em A Moça do Calendário. Não sabemos quanto tempo se passa entre uma cena e outra, ou mesmo em que ordem elas acontecem. A impressão que temos é a de estar caminhando pelos pensamentos de uma outra pessoa e, por isso, os personagens parecem fantasiosos e neuróticos.

Outra característica que vale ser destacada é a autonomia entre os planos e sequências. Aqui a ação vista não necessariamente gera impacto na cena seguinte e, mesmo que algo aconteça, pode ser que as consequências sejam diminuídas. As ações geram ecos que são propagados e percebidos muito depois. O objetivo de tamanha liberdade não é necessariamente gerar sentido, mas sensações.

Essa junção de montagens concede ao filme um ritmo aberto e exige maior capacidade de interpretação do público. Assim como na vida, a narrativa não fornece respostas prontas. O espectador é obrigado a observar os acontecimentos e gerar sentido a partir deles. Por conta disso, cada cena possui significado próprio e pode ser analisada separadamente do todo.

De maneira geral, a trama gira em torno da libertação de Inácio de um sistema opressor. Seu chefe na oficina é o típico empresário que visa apenas o lucro em detrimento do bem comum e cria um ambiente de trabalho cruel. Já os colegas escolados possuem um discurso politizado e o incentivam a mudar de vida. Nas primeiras cenas da oficina, o mecânico aparece dentro do motor de um carro, diminuído e mostrado como uma mera engrenagem na máquina capitalista que movimenta o mercado. À medida em que cresce seu descontentamento com o ofício ele vai se afastando deste local.

Para destacar a total desconexão de Inácio com a profissão, as cenas que se passam na oficina são em preto e branco. Essa dessaturação proposital é semelhante ao que milhares de brasileiros sentem quando pensam em seus empregos. A única coisa colorida na oficina é o calendário ilustrado por uma bela loira em cima de um jipe. Usando um vestido vermelho, que muito lembra o traje da própria Helena Ignez em Copacabana Mon Amour, Djin Sganzerla atua como uma válvula de escape para Inácio.

Todos os dias ele devaneia com a moça e usa a foto do calendário para fugir do ambiente de trabalho. Pouco a pouco as fantasias, que possuem uma conotação sexual, vão se tornando cada vez mais vívidas e auxiliam a tornar a jornada do mecânico suportável. De certa maneira, os momentos que ele vive com Djin representam a vida que ele gostaria de levar. Quando Inácio oniricamente consome sua paixão com a jovem sedutora o calendário também perde o colorido, o que marca sua saída do odiado emprego.

Entretanto, o mecânico se mostra um personagem muito mais ambíguo do que aparenta. Mesmo possuindo um conhecimento cultural amplo, que impede sua alienação e alimenta a insatisfação com a vida que leva, o quarentão não liga muito para os direitos das mulheres. Ele ignora completamente a esposa quando esta profere um discurso feminista, reclama e aponta os defeitos dela enquanto se olha no espelho. Uma exemplo de egoísmo masculino que está presente em todo lugar. Quando, ao final, Inácio se encontra realmente com a moça do calendário, sua atitude está mudada e ele trata a jovem com o respeito merecido.

Possuindo mais camadas do que esta fatia consegue abranger, A Moça do Calendário é um verdadeiro bolo de significados. O filme possui referências claras a O Bandido da Luz Vermelha, clássico de Sganzerla, que também tem São Paulo como plano de fundo, e ao Acossado de Godard, por mostrar pessoas em uma constante perambulação. Além dos temas destacados aqui, o longa apresenta personagens emissários de questões que vão desde a sustentabilidade ambiental até racismo, abuso de autoridade e reforma agrária. Diante do mar de pastiches que chega aos cinemas todos os anos, a produção é uma lufada de inovação autoral e, além de imprimir o estilo único de Helena Ignez, possui um desfecho politizado e poético.

A Moça do Calendário

 

Ano: 2017
Direção: Helena Ignez
Roteiro: Rogério Sganzerla
Elenco principal: Andre Guerreiro Lopes, Djin Sganzerla, Mário Bortolotto
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: