Por Felipe Teixeira

“Conheço o som de pessoas gritando e o cheiro dos cadáveres, e conheço a sensação da cocaína e das drogas no meu sangue.” As devastadoras palavras do menino Agu (Abraham Attah) no terceiro ato de Beasts Of No Nation, o primeiro longa-metragem produzido pela Netflix, são um reflexo da triste transformação pelo qual o pequeno africano é obrigado a passar ao longo dos 137 minutos de projeção. Intenso e chocante, o filme baseado no livro de Uzodinma Iweala conta a história do brincalhão e inocente Agu, que é forçado se unir a uma gangue rebelde após fugir das mãos dos soldados que destruíram sua família e o expulsaram de seu lar em algum lugar da África.

Sem nunca se aprofundar nas eternas guerras civis que assolam o continente africano há tantos anos, o roteirista, diretor e diretor de fotografia do longa, Cary Fukunaga (da brilhante primeira temporada de “True Detective”), acerta ao focar a trama na absurda perda da inocência de tantas crianças vítimas dos confrontos entre rebeldes armados e os exércitos governistas. Em nenhum momento, o grupo armado que “acolhe” Agu apresenta  ideologias próprias sobre as ações que executa, mas apenas obedece ordens de um chefe (político) supremo. Liderada pelo imponente e repugnante Comandante (Idris Elba), a gangue apresenta à Agu tudo aquilo que uma criança de 10 anos não deveria nem pensar em ter contato: drogas, estupros, armas e morte. Em uma das cenas mais fortes da projeção, Agu é coagido a realizar o seu primeiro assassinato durante um processo de iniciação. A demora do menino em cometer tamanha violência e o ato em si logo em seguida marcam o fim de uma fase na vida do pobre rapaz, condenado ao sofrimento pelo resto de seus dias antes mesmo de entrar na pré-adolescência.

A inevitável passagem do jovem protagonista de criança engenhosa a assassino juvenil é reforçada a cada momento de choque com a realidade que enfrenta. Doutrinado a matar inocentes por motivos desconhecidos e a ingerir drogas para fugir do horror a sua volta, a formidável atuação do jovem Abraham é digna de prêmios ao transparecer o medo e a revolta de Agu frente a situações tão desesperadoras. Além disso, a direção de Fukunaga e a montagem de Pete Beaudreau e Mikkel Nielsen também não aliviam o espectador durante as inúmeras cenas de violência explícita do filme, com longos planos envolvendo fatalidades e muito sangue. A cena em que a gangue rebelde do Comandante invade uma casa com mulheres inocentes durante um fantástico plano sequência (marca de Fukunaga) e o pequeno Agu confunde uma das moças com sua mãe é um exemplo de todas essas qualidades da produção. Tiros, mortes e estupros são mostrados sem cortes, enquanto o frágil menino Agu se pergunta: “Deus, está vendo o que estamos fazendo?”

As mortes de personagens importantes durante a projeção e o destino do grupo rebelde ao final da película tornam-se ainda mais angustiantes ao percebermos que tudo aquilo de nada adiantou para ninguém. Em território africano (e em muitos outros ao redor do mundo), gangues rebeldes e governos burocráticos se enfrentam a troco de nada, e a quantidade de produções que abordaram tal tema nas últimas décadas e o fato de “Beasts” nem especificar em que local da África as ações ocorrem apenas reiteram triste constatação.

A belíssima cena final de Beasts Of No Nation ao menos deixa um leve fio de esperança para alguns jovens da trama, que com menos de duas décadas de vida já se tornaram veteranos de guerra e de crianças não tem mais nada.

Beasts Of No Nation está disponível no catálogo da Netflix em todo os países em que a empresa opera desde o dia 16 de outubro.

Veja o trailer: