Por Thais Lourenço

 

(…) Já apreciaram alguma vez o Corpo da mulher ?
Já apreciaram alguma vez o Corpo do homem ?
Não vêem que são exatamente os mesmos, em todas as nações e tempos, em qualquer parte da terra ?
Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado (…)
(“Eu canto o corpo elétrico”, Walt Whitman (1855/1881) – Tradução de Ivo Barroso)

Esse trecho foi retirado do poema que serviu de inspiração ao diretor Marcelo Caetano para a realização do seu primeiro longa: Corpo Elétrico. O filme foi o escolhido para abrir o 12º Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo deste ano e já saiu pelo mundo arrancando elogios. Ganhou World première no Festival de Roterdã, foi selecionado para o Inside/Out Toronto LGBT e venceu o Prêmio Maguey no Festival de Guadalajara.

As tomadas ao longo do filme traduzem, com extrema delicadeza e cuidado, a intimidade das personagens, em especial de Elias (Kelner Macêdo), um jovem nordestino e gay, que trabalha em uma fábrica de roupas do Bom Retiro, centro da cidade de São Paulo.

No último dia antes das férias de verão, todos os trabalhadores dessa fábrica saem juntos para beber e confraternizar, e, numa cena absolutamente poética, os grupos vão se formando conforme a câmera acompanha a caminhada até o bar, em um momento focando um grupo, em outro movimentando-se para filmar outro, nos oferecendo um panorama dos relacionamentos casuais e as narrativas que são construídas a partir desses encontros. É uma visão incrível, relacionada a outro trecho do poema:

Percebo que estar com aqueles de quem gosto é o bastante,
Ficar em companhia deles pelo resto da noite é o bastante
Ser rodeado pela carne bela, curiosa, palpitante, sorridente é o bastante,
Passar entre eles, ou tocar todos eles, ou descansar meu braço mesmo bem de leve em torno ao ombro dele ou dela por um momento — o que significa isto, então?
Não exijo nenhum deleite maior que este — nado nele, como num mar.
Há algo em se permanecer junto a homens e mulheres, a olhar para eles, sentir-lhes o contato e o odor, que agrada tanto a alma,
Tudo agrada a alma — mas isso lhe agrada bem.

Interessava ao diretor captar e mostrar esses deslocamentos pela cidade, os corpos que transitam pelas ruas, o cenário urbano, os ônibus, as idas e vindas. Marcelo confessa que ama filmar a cama, o quarto, a intimidade, mas que acredita que os afetos precisem ganhar as ruas e faz do seu filme uma espécie de manifesto dentro do cinema paulista, como resposta à enxurrada de produções brasileiras que prefere gravar em estúdios e locações fechadas.

Whitman, em seu poema já citado, celebra a diversidade dos corpos e as diferentes possibilidades corporais, a abertura completa do ser humano e a busca pela beleza em todas as pessoas. Marcelo cria essa ideia no filme com fluidez, mostrando a formação de comunidades no filme, a criação de famílias a partir da identificação em constelações de personagens e nos mostrando que Corpo Elétrico é sobre a beleza dos corpos, é sobre descobertas, desejos e relacionamentos.

A primeira cena, extremamente íntima, tanto por seu teor sexual como pela aproximação da câmera do corpo dos atores e do clima de domesticidade, amarra com a última cena no mar, na calma, na leveza e principalmente na amplidão, com Elias matando as saudades que dizia estar – desde o primeiro momento – do mar. Essa sequência especificamente, me remeteu ao aclamado Moonlight e de como o mar também exerce uma influência central na narrativa, ele atua nas duas produções, como catarse. Entretanto, uma das diferenças mais acentuadas entre os dois filmes está na forma em que as descobertas corporais são feitas: Moonlight é centrado majoritariamente no sujeito, nas descobertas do indivíduo, e Corpo Elétrico é centrado nas descobertas em comunidade, e de como essa comunidade influencia e molda as diferentes personalidades e individualidades.

Há no diretor uma inquietação por discutir o amor de uma forma ampla, discutir formas de amar mais livres e mais generosas, fugindo da lógica do amor romântico, com o qual estamos tão acostumados, ou melhor, domesticados, histórico e culturalmente pelos filmes água com açúcar. O corpo aqui é denominador comum entre amor (busca por hedonismo, por prazer) e trabalho (produção, atividade laboral), a mágica e a beleza se encontram em conciliar os dois, partindo do desejo de liberdade.

A realidade que temos à frente (não só no Brasil, mas no mundo todo) é monstruosamente e desgraçadamente homofóbica, racista, machista. Não compreendendo e não compactuando, Marcelo aborda politicamente a questão do prazer e realiza o filme não para analisar esse monstro – como é de costume do cinema brasileiro, analisar a realidade – mas para oferecer sua resposta através das incertezas, das possibilidades, e não de análises.

Com data de estreia nacional em 17 de agosto, promete arrancar suspiros, elogios e é claro que algumas críticas. No momento em que estamos vivendo, assombrados por pensamentos extremistas, violentos e reacionários, são necessários os incentivos e as produções de obras como a de Caetano, que versem sobretudo sobre o amor, sobre a convivência e a coletividade.

Corpo Elétrico

Ano: 2017

Direção: Marcelo Caetano

Roteiro: Gabriel Domingues, Hilton Lacerda, Marcelo Caetano

Elenco principal: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Georgina Castro, MC Linn da Quebrada, Ana Flavia Cavalcanti

Gênero: Drama

Nacionalidade: Brasil

Veja o trailer: