Por Guilherme Franco

Lembro mais dos Corvos era uma obra que eu estava muito ansioso para assistir, acompanho o trabalho do Gustavo Vinagre há um tempo, e a atriz e cineasta Julia Katharine vem se destacando cada vez mais na cena do cinema independente nacional. Eu me surpreendi com o filme, pois esperava outra coisa da obra, um longa que acompanhasse Julia no seu dia-a-dia ou algo do tipo, e o que vi foi uma reinvenção de uma linha do documentário, e mais do que isso, um outro debate acerca do passado de uma pessoa LGBTT e de todas suas implicações.

O filme é um breve retrato de uma mulher transexual a partir de reflexões de uma insônia. Ela começa o filme contando didaticamente como foi sua infância até a adolescência, sua primeira relação com um homem mais velho e as implicações disto, do seu primeiro abuso, como aquilo a ajudou a ser quem é hoje. Mesmo sendo didática e mostrando o incômodo de ter que retornar a esta história após muitos anos, ela explica para o espectador como foi o processo de tudo isto. Eu tive um amigo que quando era criança também foi abusado e esta história sempre chocava nosso grupo de amigos, pois a forma com que ele contava não era de choque ou algo do tipo, e sim com um receio, mas ao mesmo tempo com um tom natural. É um pouco dessa forma que acontece no filme, Julia fala em vários momentos como não se sente à vontade nesse assunto. Ninguém vai entender completamente o outro, o afeto e todas as complexidades acerca deste, o que Julia nos convida é a entrar em sua vida, tentar entender tudo que ela passou, ou pelo menos dividir suas dores e a história de sua vida até chegar na importante figura do cinema independente que ela é hoje.

Por momentos, até pode se achar que algumas coisas não tem sentido ou de como Julia pode estar interpretando um papel, em cenas talvez não tão naturais (e afinal ela também assina nos créditos como roteirista), mas conforme os minutos vão passando, cada vez mais o quebra-cabeça montado por Gustavo vai tendo suas peças encaixadas, as perguntas que ele faz vai mostrando seu real motivo. Eduardo Coutinho talvez condenasse o método do diretor de refazer as perguntas a uma grande amiga que já tinha contado todas essas coisas para ele (visto que Coutinho sempre prezava o único e singular momento da gravação, nunca refazer perguntas, o diretor mandava uma equipe antes para pré-entrevistas), mas o propósito do realizador parece ser mesmo mostrar esse retrato do recontar, falar para nós espectadores que o momento amiga é uma coisa, para a intimidade deles, e o momento câmera é o que é aberto para outros olhos e possibilidade de visões na tela do cinema..

Outra questão interessante é como a obra remodela o talking-head*, o filme ainda permanece como sendo uma entrevista com Julia, mas ao mesmo tempo ela se move, muda de roupa, faz um chá, pega uma fotografia, etc. A câmera de Cris Lyra (também diretora de fotografia do curta “Quem Matou Eloá”) vai mudando como nós mudamos nosso olhar numa conversa, ela abre para planos maiores, fecha para closes de Julia, foca nas fotos que a protagonista mostra, tem planos médios que aguçam nosso suspense para por exemplo, qual figurino Julia vestirá, etc.

Um fator que acaba elevando a obra para um espaço de destaque dentro do cinema é seu fator metalinguístico, como em algumas obras do diretor iraniano Abbas Kiarostami, mas aqui diretamente. Julia cita em vários momentos como seu trabalho em uma locadora, misturado ao bullying que ela sofreu a tornaram uma grande cinéfila, ela fala de filmes como “The Birds” (1963), de Alfred Hitchcock, que talvez seja também a referência que fez alusão aos pássaros do título “Lembro mais dos Corvos”.

Em determinado momento, ela diz uma frase de sua mãe: “Na verdade a minha mãe entende que a minha vida é reproduzir filmes. “Essa citação teve um destaque pra mim, quando ela fala que sua mãe acha que por assistir muitos filmes Julia apenas os reproduz em sua vida. Quando estava no fim do ensino médio eu lia muitos livros e um dia minha mãe disse que por ler muito eu estava ficando cada vez mais cético e que isso estava atrapalhando o fato de eu não ir mais à Igreja, mas também quando minha psicóloga uma vez me disse que um dos motivos de minha ansiedade e depressão era o fato de eu assistir filmes todo dia e achar que a vida teria a mesma quantidade de conflitos e resoluções que uma obra, seja ficcional ou não, tem. E eu, sempre achava isso muito lindo e uma grande metáfora ao que mais amo: o cinema e o senso crítico.

 

*esta crítica faz parte da cobertura do Cinemascope no Indie Lisboa – Festival Internacional de Cinema de Lisboa

Lembro mais dos Corvos

Lembro mais dos Corvos

Ano: 2018
Direção: Gustavo Vinagre
Roteiro: Gustavo Vinagre e Julia Katharine
Elenco principal: Julia Katharine
Gênero: ​Documentário
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 4