No Quênia, homossexualidade é considerada crime. Com uma pena que pode chegar até 14 anos de prisão. Ter isso em mente talvez ajude a situar Rafiki – censurado no país – dentro de um espectro para além do histórico de obras que contam com questões/personagens LGBTQ no centro de sua narrativa.

Indicada ao Queer Palm e à mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes deste ano, a diretora e roteirista Wanuri Kahiu apresenta uma trama romântica a la Romeu e Julieta entre duas jovens, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva). O filme inicia de maneira vibrante, articulando planos da protagonista andando de skate pelas ruas do bairro, os transeuntes, ícones visuais (como cartazes de propaganda política) e a paisagem aonde a história vai se desenrolar. Tudo isso, lançando mão de uma montagem ágil, ao som de uma canção uplifting ritmada bastante convidativa. Quase um videoclipe. Uma bela maneira de colocar o espectador dentro daquele universo.

Depois de algumas trocas de olhares, não demora muito para entendermos que Kena e Ziki se sentem atraídas uma pela outra. No entanto, elas se encontram em posições diametralmente opostas: ambas são filhas de políticos rivais, candidatos à prefeitura da cidade. Além de viverem sob diretrizes religiosas restritas, que pregam a hetenormatividade como única via possível.

Kahiu filma aquele pedaço da cidade de maneira exploratória e reiterada, estabelecendo por meio de cores e enquadramentos uma simbologia própria, como a Kombi, um refúgio particular, onde tanto o encontro quanto a ruptura se dão; ou até mesmo os constantes planos que recortam o topo dos prédios e os fios dos postes, como se a câmera apontasse para o céu e remetesse frequentemente ao divino, posto que a religião é onipresente, colocada como resposta para tudo.

Dentro de uma comunidade patriarcal, machista e hipócrita, onde a mesma pessoa que atira pedras no amor entre duas mulheres comenta, gargalhando, que viu “fulana de tal” saindo com dois homens ao mesmo tempo e trata isso com naturalidade e até humor, ficam nítidas as conveniências dos discursos autoritários. Em meio a tanta opressão, alguns (poucos) personagens, como o pai de Kena, mostram que, também, há espaço para empatia e cumplicidade. Aliás, a complexa dinâmica da relação entre os dois é o que o longa tem de melhor, se afastando de uma simplória dualidade entre bem e mal.

Há uma importante cena envolvendo um jogo de futebol, que aponta para algo que já discuti em artigo relacionado à obra da diretora francesa Celine Sciamma, Tomboy (2013), a performatividade de gênero. Conceito, segundo o qual, grosso modo, gestos e signos são reproduzidos a fim de definir o que se entende culturalmente como homem e mulher, com parâmetros muito claros do que pertenceria ao universo masculino e ao feminino. Kena é a única mulher aceita no jogo, porque segundo um dos rapazes, ela “é como se fosse um de nós”. As portas estão abertas para ela enquanto a jovem é encarada como pertencente àquele universo (por andar de skate, jogar futebol, frequentar bares com os amigos e usar roupas que se aproximam mais do que “caracterizaria” o masculino, etc). Contudo, os limites de tanta complacência são escancarados quando sua relação com Ziki é descoberta. A partir daí, o jogo muda violentamente.

É preciso observar que, apesar da importância de trazer uma história como essa a tona, do carisma da dupla, atuações convincentes, há uma evidente fragilidade na obra quando atentamos para a uma construção causa-consequência utilizada como muleta num roteiro cheio de lacunas. Personagens inseridos sem desenvolvimento algum, como o garoto gay da vizinhança, que não tem nome, uma fala sequer, e surge pontualmente apenas para “atestar” o óbvio e entregar de bandeja ao espectador sentidos que já estavam mais do que claros.

Dimensionar Rafiki no ponto em que ele se encontra dentro dessa discussão pode amenizar, em parte, as demandas por uma história que avançasse em termos narrativos. Por ora, observo com bons olhos títulos capazes de acenar para uma resolução menos trágica e mais otimista (como feito também em Carol). Uma possibilidade, antes fruto apenas da imaginação de roteiristas, hoje absolutamente possível.

*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Rafiki

Ano: 2018
Direção: Wanuri Kahiu
Roteiro: Wanuri Kahiu, Jenna Cato Bass
Elenco principal: Samantha Mugatsia, Neville Misati, Nice Githinji
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Quênia, África do Sul, Alemanha, Holanda, França, Noruega, Líbano

Avaliação Geral: 3