Por Pietro Milan

(Participação especial do Moonflux)

OBSERVAÇÃO: Pode conter spoilers!

É uma suntuosa e exaltante panorâmica em plano-sequência a que abre o último trabalho de Matteo Garrone. Um ponto de partida esteticamente esplêndido que coloca o espectador no meio de uma colossal recepção de tons descaradamente kitsch, organizada para um notável casamento nos meandros de uma cidade na província de Nápoles, na Itália. E bem alí, entre centenas de improváveis pessoas, quase por acaso, a câmera encontra Luciano (Aniello Arena) e sua família. E com o mesmo descuido acidental que o enquadra, começa a história desse peixeiro napolitano, ativo com sua esposa no tráfico ilegal de processadores de alimentos, que, devido a sua mania de se travestir de mulher para entreter os clientes, encontra, mais uma vez por acaso, a possibilidade de participar do  Big Brother. Uma experiência que, involuntariamente, mudará (para pior) sua vida e sua relação com sua família e amigos, deixando-o literalmente à deriva.

Porém, Reality – A grande ilusão não é um filme sobre o Big Brother nem sobre a televisão. Dentre tantas produções didáticas de denúncia sociocultural, Garrone tem intenções mais abstratas, ambiciosas e profundas: descrever o percurso autodestrutivo de um homem comum, de uma inofensiva mediocridade, induzido, por vontade própria ou a contragosto, a confundir o verdadeiro com o falso, o real com o ilusório. Esse retrato pessoal, autêntico e inspirado na vida cotidiana intrinsecamente corrompida e deteriorada retém todas as qualidades de Matteo Garrone, um dos poucos cineastas do cinema italiano recente capaz de contar uma história com evidente honestidade e talento imaginativo, uma história tão banal, mas tão real e atroz ao mesmo tempo. A dedicação e o respeito que o diretor sempre demonstrou em relação à identidade de cada um de seus personagens, aqui atinge um nível de empatia muito forte. No entanto, a benevolência com que o espectador olha para Luciano, sua esposa Maria e todos aqueles que convivem e interagem com eles não ofusca a lucidez de uma análise sólida e artisticamente intensa.

O contraste entre o nível real e imaginário é restituído formalmente graças ao uso de contínuos longos planos-sequência (eficazes para mostrar melhor o desenvolvimento efetivo dos eventos no espaço e no tempo), justapostos a uma fotografia cromaticamente carregada ao extremo (que, por vontade do autor, lembra a estética dos desenhos animados) e às composições rarefeitas e com ares de conto de fadas de Alexandre Desplat. Os próprios personagens, enquanto caricaturas grotescas e fellinianas em uma primeira impressão propositadamente falsa, aos poucos vão se delineando com um ar extremamente naturalista e realista no momento que interagem entre si.

Na medida em que avança, Reality – A grande ilusão vai se tornando mais obscuro e se transforma, assim como seu protagonista, com as características alarmantes e paradoxais de uma odisseia contemporânea. E de fato, Luciano, após os testes para o Big Brother, embarca em uma viagem só de ida para fora de si mesmo, à procura de um “eu” alternativo televisivo que lhe permita concluir definitivamente uma mutação sempre desejada, sempre tentada, mas jamais alcançada com os seus simples e lúdicos disfarces. Essa difícil jornada interior, que se completa através da imobilidade paranoica da teledependência, impôs ao diretor o abandono da precedente abordagem mais objetiva e crua (imposta pela pluralidade de histórias contidas em seu trabalho anterior, Gomorra), para a adoção de um critério narrativo completamente subjetivo que frequentemente chega a confundir o ponto de vista da câmera com o do protagonista, introduzindo um emprego muito original do desfoco; sem chegar ao extremo de Primeiro Amor (Primo Amore; 2004), no qual se via os protagonistas dialogando em um barco com os rostos completamente desfocados, mas com o foco sempre em primeiro plano, de perfil ou OSS (por cima dos ombros), enquanto os rostos dos outros personagens permanecem fortemente desfocados no fundo do enquadramento, realçando a deriva mental de Luciano, que se torna cada vez mais distante da realidade, na medida em que se deixa envolver cada vez mais pelos delírios de sua paranoia virtual.

Desta forma, qualquer eventual apoio de natureza afetiva (a relação com a família cúmplice do processo, presença contínua e incômoda), racional (a perda do emprego e a ruína econômica) ou irracional (o fervor religioso) desaba diante da inviabilidade do processo de transformação de ilusão enganosa em obsessão vital. Quando Luciano consegue finalmente atravessar, invisível como um fantasma, os silenciosos corredores do estúdio de TV e os assépticos cômodos ultramodernos da “Casa”, a metamorfose é selada com uma longa risada histérica, carregada de satisfação, enquanto aquele universo fictício é finalmente sugado por uma última vertiginosa panorâmica que se perde em um vazio e azulado ambiente urbano em decadência. O filme de Matteo Garrone sobre a realidade, embora trate de personagens terrenos, se inicia e termina no ar. Emblema metafórico do egocentrismo doentio de um homem e da inexorável invocação cultura de nossos dias.

 

RealityReality – A grande ilusão (Reality)

Ano: 2012

Diretor:  Matteo Garrone.

Roteiro: Matteo Garrone e Massimo Gaudioso.

Elenco Principal: Anielo Arena, Loredana Simioli, Nando Paone.

Gênero: Drama.

Nacionalidade: Itália/França.

 

 

 

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