Temporada, dirigido por André Novais, é um filme permeado de lacunas sobre o cotidiano de uma mulher negra durante o início de uma nova fase de sua vida, quando ela é chamada para um novo emprego e muda de cidade. Assim, a obra não apresenta psicologismos. Não enxergamos os conflitos profundos da “alma” da personagem principal. No entanto, a partir dos fragmentos de cotidiano encenados em Temporada, temos acesso a uma espécie de essência muito própria, que nada tem a ver com grandes verdades, mas com pequenas grandes descobertas. A proposta ganha mais força devido a construção da protagonista Juliana, interpretada por Grace Passô, pois o que testemunhamos é o processo de empoderamento de uma mulher que é, ao mesmo tempo, retraída e expressiva, intensa e contida; de alguém que se sentia presa e começa a se libertar.

Nessa construção, a força da mise-en-scène de André Novais salta aos olhos. Por meio de planos fixos e distanciados, os corpos dos atores são organizados de maneira plástica, demonstrando como os momentos mais banais momentos de nosso dia a dia podem ter uma beleza rara.

No filme, Juliana (Grace Passô), é uma mulher mineira, com um casamento problemático, que sai da cidade Itaúna para morar em Contagem, pois passou em um concurso para agente de combate as endemias. O filme foca em seu processo de adaptação, mostrando a sua estadia em uma nova casa, o início de algumas amizades e o desenlace de seu relacionamento difícil. No entanto, ainda assim, o foco da obra nunca é a concatenação linear de grandes acontecimentos dramáticos, mas, principalmente, o retrato periférico desses temas.

Esta fragmentação não é problemática, mas parte de uma proposta clara e sólida, que não transforma os corpos em cena em supostos dados estatísticos. Eles têm vidas próprias, com todas as suas angústias e alegrias genuínas. Consequentemente, o tom do filme também é desafiador, pois há muita dor em Temporada: aborto, racismo, indiferença masculina, relacionamentos com finais abruptos e dificuldade financeira. Mas também há Ludmilla e Street Fighter. Ao misturar esses tons, cada sentimento fragmentado representado parece ganhar mais intensidade e autenticidade.

Ou seja, ainda que Temporada aborde o racismo ou pobreza, estes problemas sociais nunca definem completamente a totalidade dos indivíduos. Há um paradoxo nessa construção, pois não conhecemos, nem de perto, todos os traços de personalidades e as trajetórias de vida dos personagens, mas, ainda assim, temos certeza que eles são maiores do que qualquer enquadramento social e psicológico externo.

Fazer um cinema cristalino com essa potencialidade, que cria tempestades a partir de gotas, é essencial. Ao preservar a autonomia de corpos que, muitas vezes, são estereotipados pela grande mídia, Temporada desafia qualquer noção preestabelecida sobre o que deve ser o cinema.

O espectro de Ozu paira sobre esse cinema que se demora sobre o cotidiano. Mas André Novais tem uma personalidade própria. Os seus planos contemplativos nunca configuram tempos estritamente mortos. A beleza quase pictórica das imagens não elimina os gestos mais comuns; seja um olhar virado de Russo quando ouve que irá acompanhar a novata Juliana ou a cara de espanto da personagem de Grace quando seus colegas falam que às vezes encontram escorpiões durante as inspeções.

A distância da câmera ativa o espectador, pois ainda que algumas movimentações e olhares nos guiem, a imagem nunca é banalizada pelo uso de planos próximos que demonstram explicitamente os sentimentos dos personagens. Ou seja, nós precisamos olhar todos e buscar entender o que acontece em cena, mesmo que, aparentemente, “nada” esteja acontecendo. O mais belo de Temporada é quando enxergamos beleza nesse suposto nada.

O distanciamento visual situa melhor o espaço do filme, mas não como se Contagem estivesse submissa aos movimentos dramáticos dos personagens. Não. A cidade também parece ter uma vida própria, marcada pelo êxodo intenso e a aglomeração urbana. Mais do que um pano de fundo, a Contagem de Temporada é povoada por histórias livres. Nós não conhecemos elas didaticamente, mas esses passados transbordam no presente da imagem em cada plano do filme.

Com uma mise-en-scène e uma dramaturgia distanciada, Temporada emociona e diverte o espectador sem recorrer a clichês melodramáticos. Nos encantamos pela forma como os corpos se locomovem, nos encantamos pelas modulações da performance de Grace Passõ, nos encantamos pela personalidade viva de seus colegas, desde o ótimo Russo até um outro conhecido que diz estar com uma paixão “platonicassa”. Na verdade, nos encantamos até depois de assistirmos o filme, quando começamos a completar as suas belas lacunas alheias.

Ps necessário: O filme está disponível na Netflix e entrou em cartaz este ano pela Sessão Vitrine, projeto de distribuição coletiva da Vitrine Filmes, que, desde 2017, contava com o patrocínio da Petrobras, lançando filmes brasileiros e co-produções brasileiras nos cinemas de mais de 20 cidades. Contudo, no início de 2019 a parceria foi finalizada, mas a Vitrine anunciou que irá continuar o projeto pelos caminhos possíveis. A notícia é triste, pois filmes como Temporada possibilitam uma experiência cada vez mais necessária, principalmente nos dias de hoje: nós nos enxergamos, total ou parcialmente, na arte. Consumir representações filtradas que excluem o outro ou o diferente, seja na forma ou na conteúdo, provavelmente ocasiona a ignorância dos radicais de hoje em dia.

Temporada

Temporada

Ano: 2019
Direção: André Novais Oliveira
Roteiro: André Novais Oliveira
Elenco principal: Grace Passô, Russo Apr, Rejane Faria, Hélio Ricardo, Ju Abreu, Renato Novaes, Sinara Teles e Janderlane Souza
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: