Conforme os tempos parecem apontar uma convivência mais tolerante e harmoniosa com a diversidade de pessoas, a velha repressão e preconceito parecem espumar mais ódio para se certificar que seus privilégios permaneçam no mesmo lugar. A violência lenta, silenciosa e perdurante gera uma coibição tamanha, que quando a gota d´água finalmente transborda o copo, sai dali uma tempestade.

Essa pressão que parece vir de anos é muito bem conduzida pela dupla de diretores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon em seu mais novo trabalho, Tinta Bruta. Se trata de um estudo de personagem centrado em Pedro, um rapaz que faz apresentações eróticas com neon para webcam e que passa por um problema com a justiça ao agredir um sujeito que o ofendeu. As coisas se abalam quando conhece Leo, outro garoto que passa a se apresentar com ele e desenvolver um relacionamento.

Algo muito bem estipulado pelos diretores é a maneira como é retratada de forma direta as relações sociais e visuais e as possibilidades diversas que cada uma oferece. No mundo físico e material, Pedro é um rapaz magro, frágil, de cabelos longos que quase cobrem todo seu rosto e de poucos gestos e palavras. Já ao assumir a forma do GarotoNeon (como é seu nickname na internet), ele faz uma entrega total a sua fisicalidade, não tendo pudor algum quando está na frente da webcam.

Claro que a introversão de Pedro não se dá totalmente pela sua natureza, mas sim pela violência física e verbal que sofreu por anos, que o inibiram totalmente de ser quem realmente é e o impedem até mesmo de sair de casa, quase. Apenas por prometer a irmã que sairia de casa todos os dias, ele cumpre uma rotina de descer do seu prédio, contar cinco minutos no cronômetro do celular e depois voltar pro seu apartamento.

Aliás, algo que o filme também aborda é evasão de pessoas de Porto Alegre e como a própria cidade, esvaziada, reflete o sentimento de abandono e incerteza no protagonista. Salientado ainda mais pela partida de sua irmã que se muda o deixando sozinho ali. Aliado à solidão que nutre com o receio constante de uma cidade que contem pessoas perigosas, vemos a mudança caminhar em Pedro com a chegada de Leo: um rapaz extrovertido, com vários amigos e que não parece temer ser quem é diante dos outros. Ao permitir que se apresentem juntos, é o momento em que Pedro deixa pela primeira vez alguma pessoa física deslumbrar a sua personalidade.

No momento em que Leo diz algo reconfortante para Pedro, é o momento em que a chave vira e ele permite se abrir e finalmente se sentir bem. Obviamente, situações imprevisíveis ocorrem e a trajetória que Pedro precisa cumprir não será fácil e dificilmente seu mundo será perfeito algum dia. Porém, em um universo material descolorido e lavado, contrastando com a irrealidade da internet e suas cores exageradas, Tinta Bruta se torna um anúncio de esperança, ao estar de mãos dadas com quem sabe praticar empatia, de que apesar dos horrores da intolerância, é possível muito mais do que sobreviver, mas viver.

*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Tinta Bruta

Ano: 2018
Direção: Filipe Matzembacher, Marcio Reolon
Roteiro:  Filipe Matzembacher, Marcio Reolon
Elenco principal: Shico Menegat, Bruno Fernandes, Guega Peixoto, Sandra Dani, Frederico Vasques
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 4,0