Por Katia Kreutz
 
Filmes que mostram um homem relutante em se tornar a figura paterna de uma garotinha são tão comuns no cinema, em especial nas produções hollywoodianas, que poderia existir um gênero específico para esse tipo de história – Logan, O Profissional, Chamas da Vingança e até Meu Malvado Favorito são alguns exemplos. 
O longa francês Uma Família de Dois (Demain Tout Commence) explora questões relacionadas à aceitação não apenas do papel de pai, mas da própria vida adulta. É também um remake do sucesso mexicano Não Aceitamos Devoluções (No se aceptan devoluciones), de 2013. Justamente por isso, a sensação de “já ter visto isso antes” é frequente no decorrer da história. 
Samuel (Omar Sy, conhecido pelo drama Intocáveis (Intouchables) é um rapaz baladeiro e despreocupado, que trabalha como piloto de lanchas em uma praia francesa. Um belo dia, uma mulher com quem ele ficou algum tempo atrás, Kristin (Clémence Poésy), aparece com um bebê, dizendo que é dele.
Kristin larga a menina no colo do pai e vai embora para Londres. Desesperado, Samuel tenta correr atrás dela para devolver a criança, mas a mulher simplesmente desapareceu. Sozinho e sem dinheiro, em um país estranho, ele acaba dando sorte e arrumando um trabalho como dublê cinematográfico. Assim, cria a pequena Gloria (Gloria Colston) durante oito anos, sem que a mãe dela volte a dar sinal de vida. 
O problema é que Samuel mente para a filha, dizendo que a mãe é uma agente secreta e que, apenas por isso, não foi possível para ela criar a menina, ou mesmo vê-la por todos esses anos. É então que a verdadeira Kristin resolve aparecer, finalmente querendo fazer parte da vida de Gloria e recuperar o tempo perdido. 
O longa tem muitas falhas, principalmente quando tenta forçar um humor simplório, que acaba tornando certas cenas previsíveis e quase constrangedoras. Alguns personagens estereotipados, como o amigo gay e a professora rígida demais, também prejudicam a história. Muitos dos clichês de tragicomédias feitas para a família são os mesmos encontrados em filmes de Hollywood – inclusive montagens “fofinhas” ao som de música pop.
A verdadeira jornada do mulherengo que precisa assumir responsabilidades, que perde tudo repentinamente e vê sua vida virar de cabeça para baixo, mas que enfrenta o desafio de tomar conta de uma criança em um país estrangeiro, perde a força quando um personagem convenientemente rico aparece como mágica para tornar tudo mais fácil. São detalhes como o emprego dos sonhos que Samuel arranja sem experiência alguma, ou o fato de ele passar vários anos na Inglaterra sem ter aprendido inglês, que empobrecem o roteiro.
A direção pouco ousada de Hugo Gélin ao menos ​sabe ​explora​r​ o carisma dos protagonistas​ e as belas locações​. Omar ​Sy esbanja energia e consegue retratar, com a pequena e talentosa Gloria​ Colston, uma relação verossímil de companheirismo entre pai e filha. O personagem principal é um ser humano imperfeito, cheio de falhas, a maior delas seu comportamento juvenil, quase ingênuo. No entanto, é possível se conectar com o drama dele, quando surge a ameaça de perder a pessoa mais importante de sua vida.
​Um dos​ pontos positivos do filme é não demonizar a figura da mãe, o que tende a acontecer na vida real, em situações semelhantes. O abandono do pai é algo muito ​mais ​comum no mundo em que vivemos e, nesse contexto,​ a negação da maternidade é sempre julgada de maneira terrível. Clémence Poésy recebeu um papel ingrato, de uma mulher irresponsável, mas trouxe delicadeza na abordagem de sentimentos como a depressão e o arrependimento. Seu desejo de se reconectar com a filha, mesmo depois de tantos anos, torna compreensível a luta dela pela custódia.
​Outra reflexão interessante fica a cargo​ da forma como Samuel lida com as situações. Seu jeito de ser e até mesmo a decoração de seu apartamento refletem um homem que se recusa a crescer, mas que no fundo só quer dar à filha uma vida de diversão e fantasia. Mentir para fazer alguém feliz não justifica o erro, e ele descobre isso da pior forma, mas é algo que todas as pessoas já fizeram, em algum momento. “Eu não estava preparado, mas fiz o meu melhor.” Quem nunca?

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Uma Família de Dois (Demain Tout Commence)
Ano: 2016
Direção: Hugo Gélin
Roteiro: Eugenio Derbez, Leticia López Margalli, Guillermo Ríos
Elenco principal: Omar Sy, Gloria Colston, Clémence Poésy, Antoine Bertrand, Ashley Walters, Anna Cottis
Gênero: ​Comédia, Drama
Nacionalidade: França, Inglaterra