Em algum momento você deve ter ouvido alguém afirmar que “no Brasil ninguém lê”, ou mesmo que “os e-books vão acabar com o livro físico”. Pois é, por mais que pareçam reclamações e predições exclusivas de terras tupiniquins, essas afirmações são comuns no mundo todo, inclusive na França, como nos mostra o filme Vidas Duplas.

Dirigido por Olivier Assayas, também responsável pelos longas Personal Shopper e Acima das Nuvens, o título nos apresenta ao mundo editorial de Paris por meio da vivência do escritor Léonard Spiegel (Vincent Macaigne) e do editor Alain Danielson (Guillaume Canet). Conhecidos de longa data, ambos são casados: Léonard com Valérie (Nora Hamzawi) e Alain com Selena (Juliette Binoche). A partir da relação entre os quatro e de seu círculo de amigos, a produção estabelece uma série de conexões e aborda temas polêmicos.

Assim como o título sugere, os personagens vivem uma existência de duplicidade, o que torna sua construção emocional mais profunda e intrincada. Selena, por exemplo, possui uma visão tradicional e acredita na “alta cultura”. Mas, para sua infelicidade, atua em uma série de TV popular e discute com todos que falam sobre o show. Já Léonard, apesar do sucesso como escritor, precisa de constantes incentivos de Valérie para se auto afirmar. Entretanto, ela está mais ocupada em construir sua carreira do que apoiar o marido e se mostra, ao mesmo tempo, fria e apegada.  Alain, por fim, trabalha em uma editora de livros físicos, mas prefere ler manuscritos de maneira digital.

Em meio a tantas contradições, o público tem pequenos vislumbres do estilo de vida da classe média francesa graças às relações sociais dos casais, que frequentemente jantam entre amigos. Nessas reuniões fica claro a sinceridade francófona, que despensa um trato cru e ríspido mesmo com pessoas próximas. O desgaste nas relações também é aparente, assim como o conceito fluido para os temas de monogamia, fidelidade e traição.

Estes rendez-vous reúnem pessoas com pontos de vistas muito diferentes e geram debates espinhosos. Mantendo a fidelidade com o título, nestes momentos impera a dualidade de ideias e a argumentação verborrágica. Todos os assuntos abordados possuem um contraponto: os livros físicos, que não tem saída, versus os livros digitais, que são mais baratos; o aumento na quantidade de obras publicadas, que se opõem à diminuição no número de leitores; a ideia de literatura industrial contra o faturamento na casa dos milhões; e assim por diante.

A produção se aprofunda ainda em outros tópicos do mundo literário como a desmaterialização dos livros, a mudança nos hábitos de leitura e o papel do crítico literário. Além disso, envereda por questões relacionadas à gratuidade da arte, aos novos formatos literários e a relação existente entre a política e a pós-verdade.

Em retrospecto, a impressão que fica é a de estarmos diante de um oceano de assuntos levemente relacionados, que não caberiam dentro de um único filme. Contudo, a direção e o roteiro de Assayas garante que tudo isso (e ainda mais) seja dito em tela, tornando Vidas Duplas uma produção essencialmente falada. Toda a sua ação se apoia em longas sequências de diálogos inflamados que não deixam espaço para conversas informais ou momentos de trivialidade.

Outros elementos técnicos colaboram para criar esse ambiente governado por palavras em oposição. Entre eles o que mais se destaca é a montagem, que reproduz a dualidade dos personagens graças à constante alternância de planos em campo e contra campo durante os diálogos. Além disso, as longas sequências de conversas são intercaladas por elipses que retiram do espectador a noção exata do tempo transcorrido entre uma situação e outra. Contudo, ainda que dialogue perfeitamente com o contexto do filme, tais escolhas afetam o ritmo da produção, que por vezes se apresenta monocórdia e não oferece chance de descanso ao espectador.

Com o auxílio de boas atuações, entre as quais Binoche se sobressai, Vidas Duplas transmite um senso de urgência incomum. Seus personagens enfrentam a crise da meia idade, as mudanças na indústria editorial e as tribulações da vida conjugal. Combinadas, essas pressões fazem com que eles se dividam internamente e tenham comportamentos opostos aos que costumam apresentar num primeiro momento. Acima de tudo, sobressai o modus operandi francês que preza por praticidade e simplifica conflitos. O resultado é ambíguo, assim como toda a produção, e nos desperta, ao mesmo tempo, reflexões e impulsividades.

Vidas Duplas

 

Ano: 2018
Direção: Olivier Assayas
Roteiro: Olivier Assayas
Elenco principal: Vincent Macaigne, Guillaume Canet, Nora Hamzawi, Juliette Binoche
Gênero: ​Comédia, Drama, Romance
Nacionalidade: França

Avaliação Geral: 3