“Eu tenho que falar pelo meu pai. Eu vi como as grandes empresas destruíram a vida e o trabalho do homem que amei tanto e odiaria ver a Netflix se tornar uma delas”, declarou Beatrice Welles em um e-mail enviado ao chefe de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, e divulgado pela revista Vanity Fair no mês de abril.

Produzido pela Netflix, The Other Side Of The Wind, o último filme do pai de Beatrice, o cineasta Orson Welles, falecido em 1985, seria exibido pela primeira vez em uma das mostras não competitivas do Festival de Cannes de 2018, que começou nesta terça-feira (8). Mas uma briga entre o maior serviço de streaming do mundo e um dos mais tradicionais festivais de cinema da história impediu o aguardado acontecimento.

A confusão toda começou em 2017. Pela primeira vez em 70 anos, dois longa-metragens que não seriam exibidos nas salas de cinemas francesas foram selecionados como parte do line-up competitivo do Festival de Cannes: Okja, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, e Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe, dirigido por Noah Baumbach (Frances Ha), ambos da Netflix. A decisão dividiu opiniões de cineastas, atores e até de integrantes do júri, que alegaram que filmes que não pudessem ser contemplados na experiência máxima do cinema não deveriam concorrer pela Palma de Ouro, prêmio do evento dedicado ao melhor filme. Para evitar mais polêmicas, a organização divulgou um comunicado antes mesmo do início do festival em 2017: a partir de 2018, apenas filmes que entrassem em cartaz nos cinemas franceses poderiam competir em Cannes.  Como uma lei da França determina que um filme exibido nas salas de cinema só pode chegar ao streaming 36 meses depois, a Netflix teria de mudar sua estratégia de lançamento no país.

Um ano se passou. Boatos sobre os filmes que seriam exibidos no Festival de Cannes de 2018 começaram a circular pela internet. A britânica Cate Blanchett, duas vezes vencedora do Oscar, foi escolhida como a presidente do júri. E a Netflix não mudou de ideia: não exibiria nenhum de seus especulados filmes do festival nas telas de cinema da França. O diretor artístico do evento, Thierry Fremaux, sentenciou, no fim de março, a já esperada confirmação: a empresa estava fora da briga por uma dos mais cobiçadas estatuetas do cinema em 2018.

E foi aí que a briga ficou feia: mesmo proibida de competir, a Netflix ainda poderia exibir suas produções durante as mostras fora da competição. Mas em retaliação à decisão de Fremaux, Ted Sarandos anunciou em abril que a Netflix estava abandonando em absoluto o Festival de Cannes 2018. “Queremos estar em pé de igualdade com os outros cineastas. Eles ditaram as pautas (…). Há um risco para nós em irmos desta maneira e em termos nossos filmes e cineastas tratados de forma desrespeitosa no festival”, declarou o executivo na época. Com a decisão, alguns projetos de renomados diretores que estavam previstos para estrear em Cannes pela Netflix foram excluídos da programação do evento, dentre eles: Roma, de Alfonso Cuarón; Hold the Dark, de Jeremy Saulnier; Norway, de Paul Greengrass; o documentário They’ll Love Me When I’m Dead, de Morgan Neville; além do já mencionado The Other Side Of The Wind, de Orson Welles.

Diretores e produtores como Jean-Luc Godard, Joshua Astrachan e Filip Jan Rymsza lamentaram o complicado imbróglio entre as duas partes, assim como muitos fãs de cinema. O glamouroso Festival de Cannes é umas das principais vitrines para as premiações cinematográficas que ocorrem ao longo do ano e também uma oportunidade única para homenagear um artista. Mas quando o tradicional e o revolucionário colidem na esfera cinematográfica, é preciso avaliar o contexto em que os dois lados se encontram atualmente para se entender mais a fundo a sensível situação.

É compreensível do ponto de vista comercial que a Netflix seja contra as regras da legislação francesa, que exige um longo período para um filme sair dos cinemas até a tela de uma SmarTV ou tablet, assim como também deve ser levado em conta o protecionismo francês com a sua indústria, que sempre valorizou o mercado interno e as tradições de um dos países fundadores da sétima arte. O próprio serviço da Netflix demorou anos para ser permitido em território francês por conta de uma resistência interna, e só foi finalmente inaugurado em 2014.

A solução para o problema parece estar longe, mas certamente tem como um de seus pontos-chave a adaptação de ambos os lados à realidade do mercado atual e ao respeito pelas tradições. O Festival de Cannes chega em 2018 à sua 71° edição, premiando filmes e diretores marcantes e muitas vezes ditando os novos rumos do cinema. Federico Fellini, Luchino Visconti, Martin Scorcese, Francis Ford Coppola, e muitas outras lendas do cinema lançaram algumas de suas obras-primas durante o evento. Portanto, não é nada demais esperar que os executivos da Netflix, empresa com pouco mais de 20 anos de existência, tenham um pouco mais de paciência com o ritmo de modernização do festival que tanto já contribuiu, e ainda contribui, para a história do cinema.

Por outro lado, também não se deve condenar as estratégias da Netflix diante de um cenário mercadológico cada vez mais instável. A gigante do streaming gerou um abalo indiscutível no modelo de produção e distribuição da indústria cinematográfica nos últimos anos, financiando e lançando belíssimas produções como Beasts Of No Nation e Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi em seu catálogo, mas também irritando diretores de cinema e empresas exibidoras, que defendem a exibição de longa-metragens somente nas salas de cinema.

Mas entre prós e contras do impacto da empresa de streaming no mercado, vale lembrar que muitas produções independentes só conseguem sair do papel ou ganhar uma divulgação satisfatória graças à Netflix. Um exemplo: em dezembro de 2017, a produtora Paramount recebeu uma série de críticas negativas por vender os direitos internacionais de exibição do longa-metragem Aniquilação para a Netflix. O filme, estrelado por Natalie Portman e dirigido por Alex Garland (do excepcional Ex Machina), apresenta uma trama misteriosa envolvendo uma expedição a uma região onde as leis da natureza não se aplicam e pessoas desaparecem. Em outras palavras, como quem já conferiu a ótima produção sabe, um filme que não é voltado para o público médio. Repleto de efeitos visuais e com um design de som impactante, a produção é uma película digna da maior tela e qualidade de cinema.

Acontece que ainda em 2017, o mesmo estúdio lançou nos cinemas dois filmes autorais e de enredo pouco convencional que fracassaram em termos de bilheteria: Downsizing, de Alexander Payne, e o polêmico mãe!, de Darren Aronofsky. Prevendo um novo prejuízo comercial, a Paramout optou, então, por lançar Aniquilação apenas nos cinemas americanos (onde obteve uma fraca bilheteria) e distribuir o filme em outros países pela Netflix, em uma estratégia menos arriscada, mas que garantiu que milhões de espectadores pelo mundo ao menos tivessem a chance de conferir o filme e também não obrigou o diretor Alex Garland a tentar deixar sua produção mais acessível a fim de tentar obter um melhor desempenho comercial.

Passado algum tempo após o anúncio de que sua empresa não exibiria filmes no evento, o fundador e CEO da Netflix, Reed Hastings, admitiu que a situação acabou ficando mais delicada do que o desejado e acreditou que ambas as partes ainda chegarão em um acordo. Do mesmo modo, o diretor artístico de Cannes, Thierry Fremaux, também tentou amenizar a situação e disse que espera dividir um tapete vermelho com a gigante do streaming em novas oportunidades. Declarações como essas são importantes para lembrar que por maiores e mais antigas que sejam empresas ou organizações, elas são gerenciadas por seres humanos que ainda estão aprendendo e se adaptando ao caótico e imprevisível mercado do entretenimento. A arte cinematográfica pode ter sido prejudicada neste início de 2018 no embate entre Cannes e Netflix, mas se as duas partes em questão já são tão relevantes para o cinema quando separadas, é de se esperar ainda mais delas quando estiverem juntas.