Em Mormaço, Ana (Marina Provenzzano) é uma defensora pública que mora num velho prédio centro do Rio de Janeiro e trabalha contra o despejo dos moradores da Vila Autódromo, processo em função das Olimpíadas de 2016. Enquanto luta por esta causa, em meio a um calor recorde na cidade, sua pele desenvolve manchas misteriosas. O filme nos carrega junto de sua protagonista, personagem que procura manter as bases de sua vida profissional e pessoal.

É a partir nessa situação que Ana e a cidade do Rio se unem, de certa maneira. O mormaço de verão e as manchas viram, então, uma metáfora do mal-estar geral causado pelas mudanças urbanísticas causadas pela especulação imobiliária. Assim, a manutenção da Vila e do próprio prédio de Ana se torna gradativamente mais complicada ao longo do filme e, ao mesmo tempo, o corpo da protagonista e seu apartamento vão se deteriorando. Nesse sentido, chama atenção o paralelo entre as imagens finais de Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972) e Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), com as de musgos, manchas e fungos encrustrados em superfícies, imagens que permeiam Mormaço. Nos dois primeiros filmes, a carne de Tiradentes e os cupins expostos simbolizam a violência e a podridão que emergem de dentro de nossa sociedade.

Trazer questões sociais para o corpo dos indivíduos parece ser um problema bastante desenvolvido atualmente, mas não chegou a ser explorado no cinema brasileiro como em Mormaço. Em O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) e Aquarius há uma certa ideia de fantasmagoria que permeia o cotidiano de classe média no país, como se as injustiças sociais históricas retornassem para cobrar dos vivos. Já em Mormaço, a doença de Ana, que se revela como uma conexão sobrenatural que une seu corpo ao seu apartamento, é uma espécie de incômodo da classe média com o fenômeno que atinge a todos: o desenraizamento causado pela especulação imobiliária. É aqui que Mormaço se distancia dos filmes de Kleber Mendonça Filho, enquanto propõe uma comunhão explícita entre diferentes de classe, e se aproxima de Era o Hotel Cambridge (Eliane Caffé, 2016) – tanto pelo tema quanto pela estética naturalista. Assim, Ana não só defende o grupo da Vila Autódromo – capitaneada por Domingas (Sandra Souza), como o abriga no prédio em que mora. É dessa forma que a protagonista também influencia o arquiteto responsável pela destruição de seu prédio (Pedro Gracindo). Por fim, Rosa (Analú Prestes), sua vizinha, aparece com uma mancha parecida com a de Ana, sinalizando que ela também teria sido infectada por este “vírus” de mal-estar.

Os pontos fortes do filme se sustentam no protagonismo de suas personagens femininas, na demora dos takes – que nos ajuda a meditar sobre a catástrofe da modernização, seja na Vila Autódromo, seja nas casas e bairros que o filme mostra – e na ambição por explorar gêneros incomuns em nosso cinema. Porém, a premissa de tratar um tema social sob o ponto de vista psicológico e de uma protagonista de classe média não parece ter sido bem explorado, e assim o roteiro recai numa certa ingenuidade. Disso decorre que, embora Domingas seja interpretada por uma moradora da Vila Autódromo, as falas destes personagens são engessadas e levemente panfletárias, o que destoa do resto da dramaturgia do filme. A lógica do filme, então, conclui com uma espécie de martirização de Ana, que serviria como exemplo para disseminar (literalmente) o exemplo de resistência para os outros.

De fato, parece que os problemas atuais – em específico as barreiras físicas e psicológicas causadas pela especulação urbana – devem ser encarados através de uma união entre todos os que os sofrem. Porém, como assinala o sociólogo Francisco Bosco, estamos num período histórico em que a perspectiva de uma aliança de classes, seja na cultura, seja na política, parece distante do que tínhamos, por exemplo, nos anos 1980. A materialização disso era a noção de “cultura popular” – na música, a MPB – e a criação partidos como o PT. Se Bosco estiver certo, talvez seja daí que vem o incômodo que o arco narrativo de Mormaço pode nos trazer, enquanto solução anacrônica de conflitos. Nesse caso, as classes médias (nós) devem se perguntar mais uma vez o que cabe e o que não cabe fazer frente a barbárie. Talvez não seja a saída de Ana.

Mormaço

Mormaço

Ano: 2018
Direção: Marina Meliande
Roteiro: Felipe Bragança, Marina Meliande
Elenco principal: Marina Provenzzano, Pedro Gracindo, Analú Prestes, Sandra Souza
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: