Por Mario Neto

Umas das canções mais conceituais, impactantes e icônicas da história da música nacional, uma verdadeira ode a jornada do clássico anti-herói, um retrato violentamente deslumbrante da representação figurativa de um personagem que evoca sentimentos profundos no imaginário crítico-social do brasileiro, o cara que está errado pelos motivos certos, aquele que não se mostrou passivo em um meio opressor, aquele que revidou. Assim podemos definir Faroeste Caboclo, a obra prima composta por Renato Russo em 1979 e lançada pela Legião Urbana apenas em 1987, a qual detém aspectos emblemáticos de argumento cinematográfico, uma estória que clama por imagens.

Então, finalmente em 2013, quase 30 anos após seu lançamento, a trajetória do santo declarado pelo povo ganha uma adaptação para o cinema.Ficou a cargo do diretor estreante René Sampaio a difícil tarefa de transformar uma fábula muito bem construída e fundamentada nas elaborações imagéticas das pessoas em algo concreto e delimitado, em que a exploração inventiva não se perdesse e a aura original se mantivesse intacta, proporcionando ao mesmo tempo, uma experiência de estímulo nostálgico e de materialização do embasamento “hiper – visual”. Para tanto, René contou com a capacidade de desenvoltura criativa descritiva dos roteiristas Marcos Bernstein e Victor Atherino, os quais dispuseram da colaboração de Paulo Lins, Bráulio Mantovani e José Eduardo Belmonte, para tornar a narrativa harmônica à linguagem cinematográfica.

A trama transcorre através da vida de João de Santo de Cristo (Fabrício Boliveira), um rapaz marcado pela tristeza, fome, miséria, seca e injustiças do sertão do nordeste brasileiro, que passa a desenvolver uma brutalidade evolutiva, além de instintos vingativos, os quais, em determinado momento, o levam à cadeia. Após ser libertado, tentando se reestabelecer e encontrar alguma oportunidade, João viaja para Brasília, capital do Brasil, para encontrar e pedir ajuda para seu único parente, um primo distante chamado Pablo (César Troncoso), um peruano que goza de um grande reconhecimento e respeito na região, em função de atividades ilegais exercidas. Então Santo Cristo passa a auxiliar o primo em tais atividades, até que sofre uma emboscada da polícia e por acidente conhece Maria Lúcia (Isis Valverde), uma menina linda e meiga, por quem ele se apaixona. Depois de um tempo, Santo Cristo resolve se arriscar em um projeto arriscado e audacioso, que acaba por otimizar a produção de seu primo, algo que causa a fúria de Jeremias (Felipe Abib), um traficante playboy da região, fazendo com que um conflito sangrento seja estabelecido entre os dois.

O filme utiliza uma narrativa cronológica não-linear, auxiliada pelo recuso de flashbacks desde o início, elemento que, por vezes, se apresenta de maneira excessiva, causando uma certa dinamicidade acelerada em demasia no primeiro ato, e que estaciona de modo delongado no terceiro, funcionando corretamente apenas no segundo, em que o arco do personagem está em sua ponta mais aguda e marcante. Outro recurso empregado erroneamente é a redundante, incômoda e extremamente desnecessária narração em off do protagonista, que se sustenta na tentativa de imprimir afeição e aproximação com o espectador, mas que em nenhum momento alcança esse objetivo, por apenas dois motivos: o primeiro; porque todos já conhecem a história, bem como seus desdobramentos, logo uma narração que não proporcione nenhuma informação nova se torna completamente dispensável e irrelevante, e o segundo; a maneira arbitrária e dispersa como essa narração é aplicada causa desconforto.

Contudo, alguns recursos são extremamente bem exercidos, como a elipse catártica do início da projeção, estruturada na tarefa de extrair água do fosso através do balde, utilizado como componente de mudança de período, algo simplesmente notável. Além dos planos que fazem alusão aos clássicos do western, como contra-plongés, nos quais os personagens se posicionam para o duelo, e big closes de expressões sisudas e cerradas, evidenciando o caráter de embate físico e psicológico que a projeção propõe.

O roteiro caminha relativamente bem e triunfa ao solidificar a importância de Maria Lúcia e de Jeremias para o entendimento geral do enredo, todavia escorrega em momentos de tentativa da busca por relacionar de maneira forçada aspectos extremamente específicos da música, ou seja, a história original como um todo é inteligentemente modificada e reorganizada, porém, essa proposta é subvertida artificialmente quando são rememoradas peças singulares da canção, dando a impressão de serem jogadas para o público, como se fosse necessário uma associação direta incontestável em função da necessidade nostálgica.

Sobre as atuações existem surpresas positivas e negativas, as positivas residem na força de vontade e entrega dos dois personagens principais, Fabrício que constrói um Santo Cristo misterioso, profundo e ao mesmo tempo contido e acima de tudo cativante, deixando um pouco de lado o sadismo que o personagem apresenta na música, e a estonteante Isis, que em sua estréia no cinema, se apresenta de maneira marcante e promissora, dando vida a uma Maria Lúcia forte e coesa, que aqui ganha uma fundamental importância catalisadora. Por outro lado, as surpresas negativas estão nas representações excessivamente caricaturadas do veterano César Troncoso, fazendo um Pablo negativamente alegórico e inorgânico, e de Felipe Abib, se perdendo em cacoetes, clichês de vilão e neologismos incabíveis. Sobre os coadjuvantes de luxo, Marcos Paulo (que teve em Faroeste Caboclo sua última atuação, falecendo no período de pós-produção do filme) e Antonio Calloni, podemos caracterizar como discretamente necessárias suas respectivas representações, diferente da participação fugaz, mas primorosa de Flavio Bauraqui, fazendo o pai de João de maneira cativante e emocionante.

A ambientação do filme é sóbria e cuidadosamente elaborada por uma direção de arte afinada e comprometida, nos transportando para uma Brasília de efervescência política e criativa dos anos 80, mesclada com tons de fábula pela fotografia bucólica e de extremo bom gosto de Gustavo Hadba. A trilha sonora tem papel importante nessa composição de ambiente, utilizando sonorização adequada e meticulosa, porém, em algumas vezes passa a impressão de imposição sensorial, perdendo um pouco de sua cadência natural.

O filme traz consigo, um discurso de conscientização para temas importantes, como racismo, preconceito, desigualdade social, violência, corrupção entre outros, que não se encaixam tão naturalmente com a narrativa do longa – metragem, mas que ainda sim são extremamente pertinentes. Faltou talvez capricho, mas a intenção foi boa. Na verdade, acho que essa é a conclusão mais correta que podemos extrair de modo geral, da proposta do filme, uma adaptação ousada e corajosa, mas que se perde na falta de organicidade e na ânsia de contar de maneira inovadora uma estória que já está pronta há muitos anos e que todos conhecem tão bem. Uma experiência válida, contudo um tanto decepcionante.

 

Faroeste Caboclo (7)Faroeste Caboclo

Ano: 2013

Diretor:  René Sampaio.

Roterista: Marcos Bernstein e Victor Atherino.

Elenco Principal: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, César Troncoso, Felipe Abib, Antônio Calloni, Macos Paulo, Flavio Bauraqui.

Gênero: Ação.

Nacionalidade: Brasil

 

 

 

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