Por Lucas Torigoe

ATENÇÃO: A CRÍTICA CONTÉM SPOILERS!!!

Em busca de um novo Tiradentes

A primeira coisa que deve chamar a atenção do espectador é a simplicidade do título: Joaquim. Não Joaquim José da Silva Xavier, ou Tiradentes: apenas Joaquim. Talvez um nome como Tiradentes, o Mártir da Independência (Geraldo Vietri, 1976), ou Liberdade, Liberdade (Vinícius Coimbra, 2016) tivesse ajudado na bilheteria, mas me parece que o tal nome é uma escolha consciente do diretor Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus; Viajo porque preciso, volto porque te amo).

Joaquim é uma obra crítica que revisa o legado historiográfico e cinematográfico do herói Tiradentes, buscando não só a desconstrução do mito mas, ainda mais importante, nos legar uma outra leitura possível sobre ele. Quando digo possível, digo verossimilhante, e não só isso: necessária, uma vez que os filmes “históricos” só podem versar sobre o presente, conversando com o seu contexto de produção. Portanto, reside aqui a maior potência do filme – vejamos quais as estratégias do diretor e se elas foram eficazes.

Antes de mais nada, devo dizer que Marcelo Gomes conseguiu transmitir uma visão outra sobre o Tiradentes. E se você não acha que o filme não cumpriu essa tarefa, ou que isso não é importante, convido-o para desfrutar de alguns comentários à justa crítica do colega Bruno Carmelo, do site AdoroCinema:

“Pessoal, acabei de ter a maior decepção e o desprazer em assistir o filme Joaquim. Como Brasileiro e principalmente como Mineiro, fiquei extremamente frustrado com a imagem que foi passada no filme sobre o Alferes Tiradentes. Eu, assim como todas as outras pessoas que estavam na sala de cinema, ficamos boquiabertos com tamanha falta de sensibilidade e respeito para com a figura de Tiradentes. A imagem que o filme deixa é de um homem louco, completamente transtornado, visivelmente usado pelos senhores da época como instrumento de revolução. Gostaria que o sr. Marcelo Gomes – Diretor do filme, viesse a Minas Gerais estudar a história riquíssima de Tiradentes e da Inconfidência Mineira, pois me parece que ele lá de Pernambuco, lamentavelmente não conhece os fundamentos reais para escrever a respeito. O que vi foi uma AFRONTA a imagem de uma pessoa tão importante na história do país. Não recomendo o filme e sugiro ao sr. Marcelo Gomes que ao menos se retrate com o país e no mínimo com os mineiros frente ao descalabro que ele produziu e colocou nas salas de cinema por todo o país, decepcionante! Não precisamos de passar para o mundo através do cinema uma imagem completamente equivocada dos nossos poucos heróis. Com todos os tristes acontecimentos na política do Brasil, perde-se uma excelente oportunidade de retratar coisas positivas e pessoas que foram extremamente honestas e que lutaram verdadeiramente por um país mais justo.”

Ou esse, meu favorito:

“Ridículo, ha muitos anos não assistia a um filme tão medíocre, pobre, fotografia de última, a câmera não tinha nem um tripé para filmar as cenas (tremidas). Termina sem mais nem menos, não retrata a história e leva a imagem de Tiradentes como um porco, apenas um animal selvagem. Como retratado pelo filme, não é a toa que foi decapitado e esquartejado. Como sempre, produções brasileiras tem que ter o carimbo de patrocínio de estatal. Vergonha como gastam o nosso dinheiro com produções pobres e podres. Desta vez a Petrobras! Deve ter sido superfaturado. Lastimo em ter perdido o meu tempo e dinheiro para assistir esta obra de fundo de quintal.

Ps. vergonha que passaremos no exterior com este filma representando o nosso cinema.”

Longe da tentativa de ridicularizar estes comentários, tomo-os como parte da realidade do debate brasileiro contemporâneo, ao menos o virtual. E como são públicos, assim como este texto que vos escrevo, podem e merecem ser utilizados como pontos para minha argumentação. Embora não tão cultuado atualmente quanto outros bravos heróis de nossa gente, o Tiradentes – ou Joaquim – é feriado nacional, e sua própria coroação diz muito sobre o Brasil. Seja pela constante comparação com Jesus Cristo ou por simbolizar uma preferência oficial pela Inconfidência, em detrimento da Conjuração Baiana, o Tiradentes foi moldado pelo Estado brasileiro como símbolo da busca por liberdade e por independência – embora tenha sido assassinado e decapitado por este mesmo Estado, em sua versão old-fashioned portuguesa.

E isso é a História, com H maiúsculo. É a forma com a qual se tratou a memória desse personagem e como predominantemente ele ressoa em nossos cotidianos. Dito isso, fica evidente a importância da escolha de Marcelo Gomes. Em Joaquim, o que predomina é o ambiente do “homem comum”, da sociabilidade do cotidiano, do chão, do suor e da terra impregnada nas roupas. É uma narrativa sobre como um homem “simples” e relativamente “encaixado” veio a cometer o ato de subversão máxima: o crime de lesa-majestade. É uma possível explicação sobre a passagem da história para a História.

Assim, e não acho exagero dizer, a perspectiva que o diretor busca imprimir em sua obra ressoa as hoje inúmeras iniciativas de relativizar os olhares voltados para o passado, encabeçadas pela Micro-História italiana, a História do Cotidiano de um Annales e a História Oral, bem como suas crias contemporâneas e virtuais, como um Museu da Pessoa e a ação do coletivo SP Invisível. Joaquim, portanto, é um filme atento às problemáticas do presente, como a visão de que a História é feita, ao fim e ao cabo, por pessoas “comuns”.

As aspas aqui são intencionais, pois é notável que Joaquim retrata a maioria de seus personagens de forma complexa, o que constitui um dos pontos fortes da obra. Joaquim (Julio Machado) é um homem sedento por ouro, riqueza que usaria para libertar seu amor, Preta (Isabel Zuaá), escrava de um dos administradores da vila onde o Alferes se estacionou. Para cumprir essa tarefa, aguenta de tudo: a humilhação por ser continuamente preterido por portugueses ao cargo de tenente; a submissão sexual de Preta ao Administrador da vila; e, por último, sua situação de semi-pauperismo. Mas ele não é apenas um ser passivo, mente e trai quando preciso, e sua raiva perante a situação só cresce durante a narrativa.

O filme é separado basicamente por três partes de mais ou menos meia hora cada. Na primeira, temos de início uma figura clássica de Tiradentes: sua cabeça decapitada – mas que nos fala – na ponta de uma lança. A pergunta inicial do protagonista-defunto (à Brás Cubas): “Por que só eu fui decapitado?” será respondida ao final filme, constituindo esse o arco geral da estória. Em seguida, temos a apresentação do contexto em que se dá o enredo: a região rústica do sertão mineiro, regrada pela estrutura colonial em que, aqui, vemos poucos senhores, um poeta de ideias tortas, parte da burocracia portuguesa, alguns escravos e índios, e a maioria de homens mestiços –  ou de”livres-pobres”, como analisaria Maria Sylvia de Carvalho Franco.

É nessa última faixa que se encontra Joaquim: entre o sonho demente de se enriquecer – vivendo a boa vida em Lisboa – e a realidade de mal se diferenciar dos escravos e dos indígenas da região. A vida é dura nesta “classe média” a qual se encontra, onde meritocracia é a última coisa que Joaquim pode esperar. Eu poderia dar muitos pormenores sobre o enredo, mas este me parece ser o deslocamento central colocado pelo diretor aqui: Tiradentes não era um herói, mas um homem de seu tempo – e também do nosso, como veremos. Inflamado por promessas e desejos de riqueza e poder, aos poucos este homem vai se desiludindo, e esta é a função da segunda parte.

Na expedição ao “sertão proibido”, sai uma tropa à procura de ouro, simulacro do Brasil: um estrangeiro (português), dois mestiços, um escravo africano e um indígena, à mando de uma missão sem juízo por Vossa Majestade, Maria I. Nela as relações de classe se evidenciam, como no estranhamento entre o português Matias (Nuno Lopes) com Joaquim e o sertão, e uma bonita, mas inocente cena de comunhão musical entre o escravo João (Welket Bungué)  e o indígena (Karay Rya Pua).

À esta altura, Joaquim já perdera Preta nas matas, após ela ter degolado o Administrador, e no demorar-se insano da expedição, perde a confiança de seus parceiros, principalmente Ramalho (Rômulo Braga). O fim do segundo capítulo se dá quando Joaquim finalmente encontra pedras preciosas nos fundos da casa de uma estância que acolhe a tropa em seu retorno à vila.

Na terceira e última parte, o protagonista se aproxima dos centros urbanos, sendo recebido pelo Governador da Província para averiguar o valor das pedras. Mais tarde lhes comunicam que elas nada valem, e Joaquim permanece sem sua desejada promoção. Pior, vê que todos os antigos alferes foram promovidos, até seu amigo Ramalho. Partindo para uma expedição solo, é capturado por quilombolas, onde reencontra Preta, ou melhor, Zuaá. Assim como Joaquim, Zuaá recebeu – merecidamente – uma maior profundidade de psique. Sua representação de mulher, negra e escrava foge do senso comum, e se ela serve os homens, é abusada ou se mostra nua, não é gratuitamente. Todas estas ações trabalham para construir uma personagem ativa, complexa e com uma missão a cumprir: se libertar, o que ela de fato consegue, “virando o jogo” em relação aos brancos.

Esse é o ato final do isolamento de Joaquim, junto da venda de seu escravo João à sua própria esposa. Sem expectativas ou as antigas referências, finalmente se junta ao Poeta e embarca na aventura de seus livros. E o resto aqui, literalmente, é História, pois é onde o filme acaba. A união que se conforma entre o Poeta, seus amigos e Joaquim, é o que sela, para o diretor, o destino do protagonista. Deteremo-nos nisso mais adiante.

Uma estética da pobreza

Se o ponto forte de Joaquim é “reatualizar” a figura de Tiradentes segundo uma lógica progressista atual, atenta aos problemas de gênero, raça e ao protagonismo dos heróis do cotidiano, sua fraqueza, penso eu, está na forma como a faz. O livre entendimento da figura de Tiradentes se contrasta com a cenografia extensivamente detalhista, com ênfase nos modos de vida rudimentar da população livre e pobre da região.

O naturalismo do filme, então, trabalha para a pretensa reconstrução histórica do cotidiano das Minas Gerais: é, como foi dito, estratégia de construção de uma nova imagem de Tiradentes, essa que deve ser verossímil e factível para o espectador. Não à toa se vê o nome de Laura de Mello e Souza, uma das maiores historiadoras sobre o período, assinando a ficha técnica como consultora.

Porém, ao contrário do que o diretor possa ter pensado, a construção de uma nova imagem do Tiradentes não precisaria necessariamente passar por uma “estética do homem pobre”, baseada nos detalhes de cenografia, nos planos que privilegiam a captação dos interiores, etc. Os detalhes se configuraram em “detalhismo”, e o diretor se preocupa muito em especificar o cotidiano desta população, engessando o enredo. Por outro lado, a fotografia de planos abertos e cores precisas compôs os mais belos quadros de que se têm notícia nesse ano, desestabilizando a imagética habitual de Minas Gerais, composto pelo sobe-e-desce de paralelepípedos de Ouro Preto e Diamantina. Trata-se, de fato, de remontar por inteiro uma visão histórica e estética do Tiradentes.

Política

Nesta reoganização da figura de Tiradentes temos, como pano de fundo, uma estrutura social que é montada pelo diretor para dar vida e coesão à trama. Basicamente, como já foi colocado, temos uma oposição entre portugueses, “mestiços” e as classes servas, constituídas por africanos e indígenas. De forma mais complexa, temos no meio destes “mestiços” os intelectuais, como o Poeta e seus inconfidentes, e os “comuns”, representados por Joaquim e Ramalho, por exemplo. É impossível olhar para esta hierarquia social e não traçar paralelos com os dias atuais. Pois só olhamos para o passado com os olhos do presente – e haja presente para tanto passado!

Me permitam, por um instante arriscarmos (perigosa e automaticamente) enxergar em Joaquim uma metaforização direta dos dias atuais, para ver o que podemos angariar. Em conversa com Joaquim, o Poeta refere-se aos portugueses como os causadores da discórdia entre os “brasileiros”, pois espalham a falácia de que no Brasil só há “corruptos, vagabundos e bandidos”. Seriam os portugueses as classes dominantes atuais? Ou melhor, seriam os portugueses a encarnação de uma ideologia que demoniza de berço a sociedade brasileira, enquanto glorifica a ordem dos países nórdicos e/ou de raízes protestantes?

Outra nebulosidade paira no ar, agora pela caracterização do Poeta e sua turma. Intencionalmente trabalhados de forma superficial pela trama para que lhes recaísse a pecha de elitistas e demagogos, teriam eles identificação com alguma classe ou veio ideológico atual? Talvez a esquerda oficialesca, que quer tomar o poder (e tomou) para apenas repetir os gestos dos opressores iniciais, as classes dominantes?

Por outro lado, me parece claramente que Joaquim representa uma espécie de “classe média” do período, exprimida pelos conflitos internos e externos de seu personagem, inteligíveis graças à complexa psicologia de seu personagem. Prosseguindo com o raciocínio, Joaquim lembra a classe média atual, exprimida entre a sempre possível pobreza/falta de direitos e as promessas de riqueza e consumo, alimentadas pela crença no reconhecimento do trabalho duro realizado pelo indivíduo.

Enfim, os escravos e os indígenas figuram como as classes mais pobres e desvalidas do nosso país. E aqui, mais uma vez o retrato é borrado. Fica claro a simpatia da narrativa pela ação direta, pela “verdadeira revolta” dos quilombolas. Isso pois, no polo negativo do campo progressista, temos o Poeta e seus amigos aristocratas, que ludibriam a classe média (tradicional ou ascendente) com suas falsas palavras de liberdade e igualdade. Se este autor tivesse mais fôlego, certamente faria aqui uma comparação entre Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972) e Joaquim. Limito-me a dizer que, se a economia fílmica de Os Inconfidentes coloca Tiradentes (José Wilker) no campo positivo do filme ao lado dos escravos, Joaquim também o faz, mas reconhecendo o quilombo como uma coisa externa a ele, mesmo que ele aprove sua razão de ser, o que complexifica o retrato das relações de classe.

A grandeza de Joaquim reside também em seu fechamento, onde o filme nos sugere a resposta à pergunta inicial: “Por que só eu fui decapitado?”. Ora, pois confiou numa classe que, ao fim e ao cabo, te chamou a um banquete no qual você mesmo seria servido. Se a estetização do filme é meticulosa, a metaforização que poderia fazer a ponte lógica entre passado e futuro é intencionalmente borrada, nos possibilitando apenas enxergar os contornos e o funcionamento geral dos processos, sugerindo-nos, instigando-nos. De maneira rica, portanto, muitas perguntas foram deixadas em aberto, nos colocando apenas o provocante sentimento de que essa história toda nos é, de alguma forma, familiar.

joaquim posterJoaquim

Ano: 2017

Direção: Marcelo Gomes

Roteiro: Marcelo Gomes

Elenco principal: Julio Machado, Nuno Lopes, Rômulo Braga

Gênero: Drama, Biografia

Nacionalidade: Brasil, Portugal

Veja o trailer: