Mário Neto
Considerado por muitos sua obra-prima, além de um dos longas-metragens mais importantes da história do cinema norte-americano, Faces (1968) fez com que a genialidade de Cassavetes como diretor fosse reconhecida mundialmente, recebendo incontáveis elogios calorosos da crítica, conquistando prêmios por todos festivais que participara, além de ser nomeado para 3 categorias do Oscar de 1969 – Melhor Roteiro Original, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz Coadjuvante.
Ao analisarmos o impacto estrondoso do filme na indústria cinematográfica, é extremamente intrigante conceber o fato de que a obra foi resultado de um longo, tortuoso e caótico desenvolvimento fílmico, desde sua pré- concepção, passando pelas filmagens e se estendendo até montagem e pós-produção, reflexo de uma enorme falta de recursos básicos, somado a impetuosidade característica de John Cassavetes.
O enredo do longa é aparentemente simples: um casal de classe média que vive os últimos lapsos de um relacionamento falido. Ela, Maria Forst (Lynn Carlin), uma dona de casa depressiva que está entrando na meia idade, e ele, Richard Forst (John Marley), um empresário bem-sucedido beirando os 50 que se vê preso a um casamento tedioso. Ambos extremamente descontentes com a situação que se encontram, acabam por buscar conforto em outras pessoas, Richard conhece a eloquente e instigante Jeannie Rapp (Gena Rowlands) em um bar, e Maria por sua vez se relaciona com Chet (Seymour Cassel), um cativante garoto de programa, assim a narrativa se desenvolve, longos diálogos inconclusivos, digressões, anedotas, culminando no inevitável conflito entre o casal.
Entretanto, ao nos distanciarmos de uma recepção simplista da obra e nos debruçarmos para analisar de fato o seu cunho reflexivo, podemos perceber uma complexa e bem arranjada estrutura narrativa, na qual a persona de todos que estão envolvidos na trama, é dissecada, analisada e reestruturada, construindo, assim, aos poucos um intrincado borrão da emoções e sentimentos, que passam a implodir nestes que aqui, representam a materialização conceitual do american dream. Ao analisar o contexto em que o filme foi concebido, numa América preocupada com assassinato de presidentes, com revoltas sócio-políticas e a Guerra do Vietnã, um ensaio voraz sobre a apatia e o cinismo da classe média se torna ainda mais pertinente, uma vez que a sociedade americana não pôde assimilar de onde veio o golpe, algo que o tornou ainda mais dolorido.
A supremacia da câmera na mão, a lente invasiva com planos extremamente intrínsecos, aliada a uma fotografia “suja” num preto e branco granulado, desenvolvido metodicamente por Al Ruban, dialoga diretamente com o teor analítico e desconstrutivo da projeção, como se de fato o diretor estivesse colocando uma lupa naqueles indivíduos e pudesse observar o quão opaca, vazia e monocromática é a essência deles. Atuações angustiantes nos remetem a um certo ar de improviso, sensação que é rapidamente refutada ao se notar peculiaridades sutis na fala dos personagens, como a impostação de voz no tom preciso em que a cena demanda, algo que é alcançado, predominantemente, apenas depois de diversas tomadas gravadas, por mais experiente que seja o ator. A contraposição que o diretor traça entre uma montagem dinâmica/ câmera alucinada e verborragia inconclusiva/divagante dos personagens é sagazmente paradoxal, algo realmente notável, apenas mais uma das verves que permeiam esta obra-prima.
Faces obtém no seu desfecho algo extremamente difícil de ser alcançado: uma cena final antológica carregada de significação, inserindo no subconsciente do espectador uma série de ponderações densas, mas que em nenhum momento excluem o caráter contemplativo daquela última imagem do casal tragando seus âmagos em diferentes degraus de uma mesma escada.
Ao transgredir padrões estéticos recorrentes, subverter cartilhas para meios e processos de produção cinematográfica, desenvolvendo uma nova ótica da sociedade norte-americana dos anos 1960 e 1970, o cineasta norte-americano John Cassavetes instituiu uma maneira revolucionária de pensar e fazer cinema, primando pela essência autoral e autônoma, criando assim um marco referencial para o que viria a se tornar o cinema independente americano, e posteriormente uma inspiração para todos os realizadores marginais mundo a fora.
Você não sabia que…
– John Cassavetes escreveu o roteiro de Faces em um período extremamente conturbado de sua vida, desiludido e rejeitado por Hollywood dependia do salário de sua esposa, a atriz Gena Rowlands, com que tinha um filho.
– Antes de receber a indicação de melhor roteiro original por Faces, John já havia sido nomeado pela academia no ano anterior por seu trabalho de atuação no filme Os Doze Condenados (1967).
– A atriz Lynn Carlin, nomeada ao Oscar como melhor atriz coadjuvante, era na verdade a secretária do também realizador Robert Altaman e acabou fazendo o teste para quebrar um galho, o papel designado por Lynn era na verdade de Gena Rowlands, que ao descobrir que estava grávida teve de recusar o papel.
– John foi um grande ator, assim sua obsessão por atuações perfeitas beirava a perversidade, em um episódio, o diretor pediu para que o ator Seymour Cassel esbofeteasse de verdade a então novata Lynn Carlin em uma das cenas, para que a espontaneidade não fosse perdida, o resultado foi que Carlin se assustou e não conteve o choro.
Veja o trailer: