Por Frederico Cabala
“A plateia só vê uma faceta minha como ator e roteirista em O Dorminhoco (1973) e nos meus outros filmes. Aquela parte de mim que pode fazer uma comédia rasgada, de piadas, mas isso é só uma das coisas de que sou capaz. É que nem mostrar para eles uma diversãozinha interessante, mas não é exatamente o que sou. Ou, para ser mais preciso, gostaria de ser mais do que isso: mais abrangente para eles, e me abrir mais. Então é nisso que eu estou trabalhando, tentando desafiar os meus imites, mesmo que só um pouquinho de cada vez”.
A declaração foi dada por Woody Allen numa entrevista em 1974. O diretor, à época mais reconhecido como um comediante de stand-up bastante presente em programas da TV norte-americana, tinha assinado até então seu nome em quatro longas. Influenciado pelo humor pastelão dos irmãos Marx e pela fragmentação da narrativa em pequenos esquetes, nesses primeiros filmes de Woody a comicidade se sobrepunha à trama. Por isso, o roteiro por vezes quase não tinha pé nem cabeça.
A mudança do diretor prenunciada em 1974 se concretizaria definitivamente três anos depois com o lançamento de Annie Hall, no Brasil traduzido ao reducionista Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Divisor de águas não só da carreira de Woody Allen, que teve seu estilo moldado a partir desse filme, mas também de todo gênero comédia romântica, Annie Hall tem relevância não somente sustentada pelos prêmios que ganhou, incluindo quatro Oscar (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz e Melhor Roteiro Original), mas principalmente pelo legado cultural que deixou.
A ideia do filme, aparentemente simples, mas cuja densidade psicológica seria de difícil transposição para as telas, era “fazer um filme com gente de verdade (…). Não um cara que acorda no futuro, ou que é ladrão de banco, ou que domina um país da América Latina. Queria fazer um filme em que eu represente a mim mesmo, a Diane Keaton faça ela mesma e a gente more em Nova York, com os conflitos reais do nosso relacionamento, em vez de uma ideia muito extravagante”.
Desenvolvido a partir desse pensamento por Woody Allen e Marshall Brickman, Annie Hall espanta pelo realismo ao projetar a vida de Alvy Singer (Woody Allen), comediante de stand-up, e seu relacionamento com Annie Hall (Diane Keaton), uma cantora em começo de carreira. É só isso e é tudo isso. Apesar de ser um tema inicialmente genérico e pouco sujeito a conflitos visuais na tela, a partir dessa premissa, o diretor direciona o foco da trama aos diálogos, monólogos, digressões filosóficas, inserção de memórias, sexualidades, conflitos existenciais e os tantos altos e baixos de uma vida a dois compartilhada entre Alvy e Annie, num percurso sempre acompanhado pelo humor autodepreciativo característico do cineasta.
Para dar conta de transmitir com imagens os dilemas internos de seus personagens, Woody usa inventivamente de recursos cinematográficos. Assim, há aqui, pela primeira vez na carreira do diretor, a presença de personagens fora de campo, legendas para representar o fluxo de consciência de Alvy e Annie, constantes interações com a câmera, e até a marcante cena de sexo em que a desinteressada mente de Annie sai do próprio corpo e acende um cigarro.
O sucesso de público e de crítica em um filme tão mais pé no chão que os anteriores do diretor, se deve em grande parte à relação real entre os atores principais cuja química se transpôs ao filme. Os dois já haviam trabalhado juntos em Sonhos de um sedutor (de 1972, que Woody Allen atuou e roteirizou), O Dorminhoco (1973) e A última noite de Boris Grushenko (1975), e ainda fariam parte do elenco de outros posteriores. Mas nada se iguala ao desempenho da dupla como o casal Alvy e Annie.
Woody e Diane tiveram um envolvimento amoroso e chegaram a morar juntos. Após terem desatado a relação e virado amigos (tal qual Alvy e Annie), passaram a dividir alguns trabalhos com uma interação que sempre ganhou em espontaneidade e naturalidade. Isso fica evidente numa famosa cena do começo de Annie Hall, em que os dois têm que lidar com lagostas na cozinha e só fazem cair na gargalhada. Foi um momento fora do programado, que o fotógrafo Gordon Willis (mais um que aqui iniciou uma longa e frutífera parceria com o diretor) captou com maestria e assim ficou no corte final do longa.
O título do filme teria sido Anedonia (que significa a incapacidade de sentir prazer) e seria muito mais voltado aos problemas psicológicos somente de Alvy Singer não fosse a o apelo que a personagem Annie Hall gerou, batizada a partir do nome próprio de nascimento da atriz que a encarna: Diane Hall.
Annie Hall pode remeter também à expressão inglesa Anyhow, algo com a ideia de “casualmente” ou “de qualquer maneira”. A exploração das nuances psicológicas de relacionamentos “comuns” inauguraria aqui um traço que passaria a ser típico (e tantas vezes repetitivo à exaustão) do cinema de Woody Allen. Ao que parece, essa vontade de projetar as facetas profundamente humanas se baseia fortemente no cinema do sueco Ingmar Bergman, cujo lugar de referência maior nunca foi escondido pelo cineasta nova-iorquino. A cena de abertura de Annie Hall se dá em um cinema que tem um cartaz do filme Face to Face (1976). Ao ser questionado sobre a ausência de trilha sonora em filmes como Annie Hall (que só usou música incidental) e Interiores (de 1978, que nem música incidental usou), Woody disse: “Naquela época eu estava muito interessado na obra do Bergman, e o Bergman nunca usa música”.
Apesar da nunca negada influência, sobretudo por tratar também com complexidades psicológicas, há diferenças de ênfase que colocam esses autores em posições distintas. Woody bebeu da fonte de Bergman, mas construiu seu próprio estilo ao quase nunca se furtar do humor mesmo quando estão em cena questões existenciais dramáticas de seus personagens. Assim, seu cinema despontou com obras cujas características principais estão contidas em Annie Hall, tais como Manhattan (1979), Hannah e suas irmãs (1988) e Maridos e Esposas (1992). Indo mais além, podemos falar também que Annie Hall, ao conceder à comédia algo mais denso e intelectualizado, germinou fora do cinema de Woody, abrindo caminhos para filmes como Harry e Sally (1989) e 500 Dias com Ela (2009).
- Annie Hall é um dos maiores sucessos de Allen também em termos financeiros. Considerando o reajuste inflacionário, o filme figura em primeiro entre os que mais arrecadaram. A produção do longa custou em torno de 4 milhões de dólares e o retorno foi de 38 milhões somente nos EUA.
- Com Annie Hall, Woody teve um trabalho seu indicado pela primeira vez ao Oscar, no ano de 1978. E ali começou a estranha relação do diretor com a academia, que nunca compareceu nas cerimônia para buscar suas estatuetas. Na única vez que Allen esteve presente na premiação, ele nem havia sido indicado. Foi em 2002, quando o diretor fez um discurso em homenagem à cidade de Nova York em razão dos atentados de 2001.
- Annie Hall não é o melhor filme dirigido por Woody Allen segundo o próprio diretor. Ele prefere os longas Zelig, A Rosa Púrpura do Cairo e Maridos e Esposas.
- A cada vez que Diane Keaton aparecia para filmar com seu jeito de vestir peculiar, o pessoal do figurino ficava de cabelo em pé e procurava em vão fazê-la usar trajes mais “comuns”. Fato é que a atriz ditou moda. Em anos posteriores ao filme, as combinações improváveis que mesclavam coletes, chapéus e gravatas, acessórios antes masculinos, viraram febre também entre as mulheres.
Veja o trailer do filme à época de seu lançamento:
E, como extra, não poderia deixar de postar a Diane Keaton mandando bem nas cenas em que é preciso soltar a voz ao interpretar a cantora em início de carreira Annie Hall. Vejam só: