Por Mário Neto
Entre as inúmeras obras – primas do mestre Billy Wilder, Testemunha de Acusação (1957) figura entre os títulos mais aclamados do legendário diretor/roteirista. Não apenas por se tratar de um trabalho extremamente envolvente e surpreendente, como a maioria de seus filmes, mas também por se tornar referência no subgênero filmes de tribunal explorando uma nova maneira de abordar o julgamento de um crime repleto de lacunas, no qual o mistério que permeia toda a projeção se encontra na incerteza da inocência do réu, ao invés da resolução do crime em si.
No início somos apresentados a figura icônica de Sir Wilfrid Robarts (Charles Laughton), um renomado advogado conhecido pela sua capacidade de articular defesas astuciosas e triunfar em casos perdidos, mas que agora se recupera de problemas de saúde e por isso esta terminantemente proibido de aceitar casos criminais ou que provoquem fortes emoções. Entretanto, não demora muito até que o simpático Leonard Vole (Tyrone Power) o procure a fim de seus serviços, apresentando ao experiente jurista uma situação desafiadora, na qual Vole se encontra na posição de principal suspeito de um assassinato em que seu único álibi é sua mulher. Não obstante sua inquietação para assumir tal desafio, o advogado rejeita o caso devido suas restrições médicas e o passa para seu colega de confiança Brogan – Moore (John Willians). Quando tudo indica que Moore será o principal responsável pela defesa, a ardilosa esposa de Vole, Christine (Marlene Dietrich), bate a porta de Sir Wilfrid e consegue cativá-lo, fazendo com que posteriormente ele aceite o caso. A partir deste ponto, uma série reviravoltas irão se manifestar ao longo de toda a narrativa, culminando em um dos finais mais surpreendentes da história do cinema.
A meticulosidade e o apreço no processo de arquitetura do roteiro é algo notório em quase todos os trabalhos de Billy Wilder, traçar e edificar percursos narrativos com maestria é a especialidade do realizador, não por coincidência, diversos de seus trabalhos sempre estão presentes nas listas de melhores roteiros da história, ou seja, Wilder tinha a capacidade de contar história como poucos e em Testemunha de Acusação essa formidável característica é responsável por preencher a essência do longa-metragem como um todo, podendo-se dizer que o discurso possui impacto maior na trama do que a estética. Desde o primeiro ato da projeção, em que o Incidente Incitante se apresenta ao protagonista transmutado de Femme Fatale, ficamos receosos com todos os novos fatos que se sucedem, como se tivéssemos a estranha sensação de que algo não se encaixa nos depoimentos de Vole e sua mulher, efeito que Wilder consegue atingir apenas com discretos beats dramáticos. A profundidade e a riqueza dos personagens também são fatores importantíssimos para o desdobramento da história, pois estes auxiliam de maneira extremamente perspicaz o desenvolvimento do arco dramático do personagem principal, arco que aqui, não compreende uma conclusão convencional.
Todavia, o que tonifica a condução do roteiro e permite que as habilidades narrativas de Wilder sejam evidenciadas é a direção de atores executada magnificamente. Existe um imenso cuidado no modo em que cada personagem profere uma fala ou executa uma ação, principalmente nas cenas envolvendo Christine, pois sua característica enigmática é o ponto chave da trama, assim sendo, sua personalidade é minuciosamente trabalhada, desde a indiferença na sua postura até o seu olhar indecifrável. O personagem principal, por sua vez, é direcionado para que desenvolva sua persona de maneira espalhafatosa, carregando consigo uma carga enorme de autossuficiência, tal direcionamento pode parecer um tanto exagerado e até mesmo equivocado, contudo ele é desenvolvido de modo proposital, tendo em vista a quebra constante do andamento da trama. Isto é, Wilder constrói junto com Charles Laughton um personagem que soa como uma espécie de “edifício dramático”, pomposo, vigoroso, vistoso, chamativo, para que quando este “edifício” for desconstruído posteriormente, o espectador sinta com mais violência o choque do “tremor narrativo”, algo simplesmente genial.
A direção de fotografia é vitoriosa no que se propõe, utilizando planos conjuntos e diversos movimentos de câmera dentro da casa/escritório de Sir Wilfrid, para ilustrar a característica frenética do local, contrapondo pontos abertos e fixos nas cenas do tribunal, que evocam a sensação apreensiva, porém equilibrada do recinto. As cenas em que o advogado desce sua escada em uma cadeira/elevador podem ser compreendidas como uma metáfora para enfatizar o ar de superioridade do personagem que se encontra em um patamar acima dos demais. A fotografia em si é limpa em um preto e branco charmoso, se relacionando de maneira sóbria com o ambiente ela consegue ser elegante e eficaz ao mesmo tempo.
De modo geral o filme é quase impecável, a única ressalva que tenho a fazer é quanto ao tom demasiadamente debochado de duas personagens, a empregada Janet McKenzie (Una O’Connor) e principalmente a enfermeira Miss Plimsoll (Elsa Lanchester). No meu ponto de vista, caso a atuação dessas duas personagens fossem trabalhadas de maneira um pouco mais circunspecta, não tenho dúvidas de que o tom dissimulado da obra seria potencializado, tornando a elucidação dos acontecimentos mais impactante ainda. Não quero dizer que as atrizes executaram de maneira equivocada seus papéis ou que a direção de atores foi ineficaz, muito pelo contrário, Elsa Lanchester desenvolve um excelente trabalho de atuação naquela concepção que lhe fora proposta, o que eu achei equivocada, foi justamente essa concepção dramática, que na ótica de Billy Wilder era a correta para as personagens. Pois é compreensível a utilização dessa verve cômica proposta por Wilder para conferir certa leveza e simpatia à projeção, atraindo assim uma parcela maior de espectadores. Visto que ele era um artista completo, conseguia impor seu caráter autoral e ainda arrastar multidões para as salas de cinema, não foi à toa que Testemunha de Acusação foi sucesso de crítica e público na época de seu lançamento e até hoje é considerado um clássico absoluto do subgênero.
Você não sabia que:
– O filme é uma adaptação de uma peça teatral baseada em um conto de Agatha Cristie, escritora famosa por seus romances policiais. Billy Wilder acrescentou algumas informações que não constavam no texto original, mas em sua essência o teor da trama foi mantido.
– Nos cinemas em que o filme foi exibido, ao término da sessão uma voz pedia para que as pessoas que acabaram de ver o filme não revelassem o final para quem ainda não havia ido ao cinema, atrelado a publicidade do cartaz que fazia o mesmo apelo, algo parecido com a promoção do filme Sexto Sentido de Shyamalan.
– O longa recebeu seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme, melhor diretor, melhor ator (Charles Laughton), melhor atriz coadjuvante (Elsa Lachester), melhor edição e melhor som.
– Elsa Lanchester era casada com Charles Laughton na vida real.
-A atriz Marlene Dietrich, que interpreta de maneira soberba a intrigante Cristine, também era cantora na vida real, o seu talento pode ser percebido na cena de flashback em que ela se apresenta em um cabaré na Alemanha. Outra curiosidade sobre Dietrich, é que a atriz foi convidada pelo próprio Hitler para estrelar filmes com propaganda nazista, ela não somente recusou o convite como se tornou cidadã americana, para a ira do Führer.
Veja o filme: