“Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”: o mesmo alerta inscrito na entrada do inferno, descrito na Divina Comédia, poderia figurar como epígrafe do recente e dantesco filme de Lars von Trier.
“A casa que Jack construiu”: no imaginário inglês, essa expressão remete às baladas populares medievais em que a sequência de frases se constrói com uma repetição do verso anterior mais algum acréscimo, ao infinito. Quase como um “fui à feira e comprei…” de nossas doces brincadeiras infantis.
Nada infantil, nada doce, A casa que Jack construiu de Lars expressa a sinistra arquitetura do crime de um serial killer ao longo de, segundo ele próprio, doze anos de atividade. Sendo ele um arquiteto frustrado, que não é capaz de erguer sua própria casa, Jack (Matt Dillon) narra seu percurso de crueldade detendo-se no que ele chama de cinco “incidentes”.
Desde seu primeiro assassinato, em que desfere golpes na cabeça de uma mulher (Uma Thurman) com um macaco hidráulico (Jack, em inglês), até sua ideia de resgatar o teste nazista de aferir quantas cabeças uma única bala Full Methal Jacket pode atravessar, o personagem partilha a própria história com um interlocutor chamado Virgílio (Bruno Ganz). A sensação é de estar em queda pelos círculos da mente desenfreadamente agressiva de um psicopata.
Perverso e narcisista, Jack é meticuloso em seus crimes. A um Virgílio que põe sempre em suspeita suas motivações, o protagonista revela como há um desejo de marcar a autoria de seus feitos. Quase como assinaturas de uma obra artística, Jack passa a fotografar os corpos de suas vítimas, inscrever o codinome “Mr. Sofistication” e mandar aos jornais. De tempos em tempos, a banda sonora abre espaço para Fame, de David Bowie. Parece haver em Jack um desejo de tangenciar o perigo, de brincar com as instituições como os bichos que brincam com suas presas, de evidenciar ao mundo que você pode gritar, escancarar o horror, e “ninguém vai ligar”.
Com isso, além de cenas de crueza perturbadora, o filme passa a se espelhar na discussão da estética da crueldade. É possível existir isso? Jack diz que sim, se ancora em Hitler, Mussolini, na ideia de arquitetura da destruição e de beleza das ruínas. Ancora-se, como não?, no próprio cinema de Lars, e a pergunta cortante como uma machadada é: Até onde a arte pode ir? Há um limite ético pro estético?
O filme retruca essas questões de duas maneiras: primeiro, com os próprios argumentos do protagonista ao expôr sua mania obsessiva em matar de modo sempre acurado, metódico, estilístico. Outra forma de defender a estética insubordinada à ética é o modo de representação visto nessa obra do cineasta dinamarquês. A um estilo de exploração quase documental – com câmera tremida na mão, granulagem das imagens e pouco uso de música que faz o espectador se sentir ali, ao vivo – a esse estilo se acopla uma crescente abertura à alegoria fantástica de Dante.
A descida aos recônditos temidos da mente de Jack é uma descida da humanidade às profundezas sem remissão. O Inferno de Dante é uma referência importante não apenas explícita no discurso, como no caso da própria aparição de Virgílio, mas é uma preocupação mesmo plástica. Um corte como o de Jack e Virgílio se equilibrando em barco, num mar revolto, põe o filme em conversa com uma pintura do francês Eugène Delacroix cujo tema havia sido mesmo o livro de Dante.
Talvez seja impossível julgar o cinema desse diretor separando de fato o criador de seus filmes. O cineasta, disparador de controvérsias, parece desejar ecoar em suas obras as polêmicas que ele mesmo costuma incitar por onde passa. Uma crítica do jornal Estadão diz que o novo filme de Lars revela “complacência com o mal”. Na Folha, um artigo afirma que se trata do filme “mais cruel e misógino” do diretor. As saídas de sala de projeção em Cannes durante a exibição e, agora, dos cinemas de todo o mundo (somente duas pessoas saíram na sala em que eu estava), são o gesto físico desse mesmo pensamento de repugnância à obra.
Por outro lado, outros – e aqui me incluo – pensam que a torpeza e a crueldade são, sim, repugnantes, mas elas continuam a existir por aí, ao nosso redor, não é mesmo? Não seria restringir a arte a uma função de apenas espelho encantado quando afirmamos que um filme é condenável por conta de frases (condenáveis) ditas pelos seus personagens? Lembremos que A casa que Jack construiu possui um narrador psicopata, longe de qualquer esclarecimento e lucidez. Suas afirmações estapafúrdias são, por vezes, tratadas de modo irônico pelo interlocutor Virgílio. De resto, o absurdo demencial da mente de Jack se escancara durante a projeção. Querer um gesto condenatório explícito da parte de Lars von Trier seria esperar demais (ou de menos) do diretor.
O dinamarquês parece ser daqueles, aliás, para quem esse tipo de divisão de opiniões atesta o sucesso da obra. Por todo seu cinema, e talvez aqui estejamos diante do centro nervoso desse todo, há um desejo de choque do real, de utilizar os efeitos da abjeção para impactar o espectador inclusive fisicamente. Como no caso dos vanguardistas do século passado, Lars deve ser daqueles para quem a vaia é também o maior aplauso.