“Não há nada ligado à produção de um filme que uma mulher não possa fazer como um homem. E não há motivo pelo qual ela não possa dominar cada aspecto técnico dessa arte”, escreveu Alice Guy-Blaché, em 1914, para uma revista dos Estados Unidos sobre a indústria cinematográfica. 

A reivindicação dessas palavras manteria a mesma força se elas fossem publicadas um século depois, como afirmam diversos movimentos feministas surgidos nos últimos anos em busca de maior reconhecimento da participação feminina na sétima arte. Alice Guy-Blaché. Qual foi a primeira vez que tivemos notícia desse nome? 

 Alice Guy-Blaché: A História Não Contada Da Primeira Cineasta Do Mundo (Be Natural: The Untold Story Of Alice Guy-Blaché, no original) estreou neste 8 de março no Streaming do Telecine. Com direção de Pamela B. Green, o documentário viraliza a pergunta “Você já ouviu falar em Alice Guy-Blaché?” e, diante de tantos nãos, inclusive de muitas pessoas ligadas ao cinema atual, busca retomar esse nome e lançar luz sobre seu pioneirismo e importância para a própria concepção de filmes que temos hoje. 

 O itinerário do silenciamento é conhecido. Além do cinema, exemplos são abundantes em outras artes. Mulheres que se destacam, fazem sucesso, recebem aplausos e são reconhecidas em suas épocas “misteriosamente” somem do radar de registros históricos para gerações futuras. Sabemos que esse é um caso nada incomum. 

Alice Guy-Blaché, francesa, testemunhou o nascimento da sétima arte na famosa projeção pública dos irmãos Lumière, considerados uns dos pais do cinema, em 1895, em Paris. Ela trabalhava como secretária e estenógrafa da Companhia Gaumont, de Léon Gaumont. A empresa fabricava e vendia máquinas fotográficas quando percebeu o promissor advento da sétima arte.   

Até então, as primeiras criações em filme se concentravam em registrar matérias do cotidiano: pessoas caminhando na saída da fábrica, trens em estações, ondas batendo em pedras. Alice Guy-Blaché solicitou autorização a Gaumont para filmar materiais artisticamente engendrados em uma narrativa. Ao que parece, aí ocorreu o parto do cinema ficcional. Para nós, hoje, criar narrativa com imagens em movimento parece algo óbvio, mas, ecoando uma pergunta que é feita no documentário, como alguém teve essa percepção em um momento que nem cinema havia?  

Apesar de tanto enaltecimento que vemos aos pais, patronos e patriarcas do cinema, o exemplo de Alice Guy-Blaché ilustra como houve também mães, matronas e matriarcas responsáveis pelo surgimento da arte de fazer filmes. Já em 1897, ela foi nomeada como Chefe de Produção da Gaumont. Além de ter sido pioneira nas narrativas, a diretora ainda se destacou por ser uma das primeiras a aprimorar técnicas como closes, fotogramas coloridos à mão, som sincronizado, tela dividida, efeitos especiais e uso de animais em cena. Sua produção é estimada em mais de 700 filmes.  

 Ela esteve ainda na dianteira em negócios cinematográficos realizados nos Estados Unidos, tendo sido fundadora da produtora Solax, em New Jersey (local que foi uma espécie de primeira Hollywood), companhia que entrou em declínio após Alice ter contraído a gripe espanhola e com o fim de seu casamento, no início dos anos de 1920. Após isso, a diretora retorna à França com seus filhos e não consegue mais se inserir na indústria de filmes. O resto é história. Ou melhor, o que a história deixou de contar.  

 Em uma narrativa sedutora e instigante, Pamela B. Green encara o silenciamento como um desafio e impressiona pela capacidade de pesquisa a fim de ligar as pontas e reconstituir a trajetória de Alice Guy-Blaché. Demonstrando uma incansável aptidão para realizar entrevistas, a diretora recolhe uma considerável quantidade de materiais importantes e faz descobertas espantosas, que funcionam como lição e encorajamento para pesquisadores dedicados a escovar histórias a contrapelo na tentativa de identificar vozes fortes e caladas no registro do tempo. 

A inquieta edição de todo o material mantém a agilidade que parece ser característica tanto do espírito investigativo de Pamela quanto do ímpeto criador de Alice. Os achados de arquivo – possíveis ainda graças à existência de profissionais que pouco aparecem, mas são fundamentais para o cinema, como os arquivistas e restauradores – são utilizados com a ajuda de recursos gráficos que dinamizam o fluxo da narração (feita por ninguém menos que Jodie Foster). 

 Com montagem engenhosa, salpicada de depoimentos de arquivo de uma Alice já idosa, de voz fraca e doce, mas ainda firme na reivindicação de seu lugar, o documentário nos convida a uma viagem não linear no tempo. As falas de Alice, já próximas à sua morte em 1968, se misturam às suas primeiras projeções e incursões no ramo. Documentos da época convivem com a busca atual da documentarista por preencher as lacunas da história. 

Como vemos no documentário, a historiografia do cinema, essa instituição que parece mágica, mas é profundamente ideológica, muitas vezes deixou de mencionar Alice Guy-Blaché ou, mesmo registrando seu nome em algumas ocasiões, chegou a atribuir a outros (a homens) criações dela. O caminho aberto pela não linearidade do tempo é também um convite para revirar a história como esta vinha caminhando até pouco tempo atrás e reescrevê-la com sensibilidade e justiça.  

Além do Alice Guy-Blaché: A História Não Contada Da Primeira Cineasta Do Mundo, o Telecine também disponibilizou alguns filmes da própria diretora na cinelist Pioneiras do Cinema. Vale assistir, antes ou depois do documentário. Entre seus filmes que lá estão, o curta O Cair Das Folhas (Falling Leaves, 1912) narra a gana de uma garotinha que tenta prender de volta nos galhos as folhas que naturalmente teimam em cair em seu quintal durante o outono, após um médico ter dito que sua irmã tuberculosa morreria quando caísse a última folha da estação. É quase uma alegoria do esforço de Pamela B. Green por manter vivo e reverberar o legado de Alice Guy-Blaché. Ao fim do curta, a irmã sobrevive. Com o documentário sobre Alice, a sensação é que algo parecido acontece. 

Para quem se interessou, a plataforma de streaming do Telecine oferece os 30 primeiros dias de acesso  gratuitamente para você conhecer e explorar os mais de 2 mil filmes ali presentes. São cinelists, longas nacionais, documentários e muito mais para você mergulhar fundo no universo cinematográfico.

Alice Guy-Blaché: A História Não Contada Da Primeira Cineasta Do Mundo

Alice Guy-Blaché: A história não contada da primeira cineasta do mundo (Be natural: the untold story of Alice Guy-Blaché)

Ano: 2018
Direção: Pamela B. Green
Roteiro: Pamela B. Green
Elenco principal: Jodie Foster, Evan Rachel Wood, Andy Samberg
Gênero: Documentário
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: 5