Paulo Júnior
Em 1989 foi lançado um dos filmes mais lucrativos da história do cinema mundial: Batman, de Tim Burton. Uma das polêmicas envolvendo a produção foi a escalação de Michael Keaton para o papel principal, já que este se destacava mais em comédias do que em dramas. Keaton conseguiu destaque internacional, tonando-se uma celebridade, e três anos depois estreou a continuação do longa-metragem, Batman: O Retorno, também dirigido por Burton.
O filme obteve um grande sucesso de bilheteria e a produtora Warner Bros. decidiu realizar outro filme, dessa vez sem Burton na direção. Após ler o roteiro da nova produção, Keaton recusou o papel, pois não havia gostado do enredo. Assim, em 1995, estreou Batman Eternamente, dirigido por Joel Schumacher e tendo como protagonista Val Kilmer. Desde então, Keaton caiu no ostracismo, sem nenhuma participação relevante no cinema.
A tragicomédia Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), do mexicano Alejandro González Iñarritu mostra os bastidores e o processo de uma obra teatral na Broadway, dirigida, adaptada e protagonizada por Riggan Thomson (Keaton), um ator hollywoodiano fracassado que no passado viveu o super-herói Birdman e que, após recusar protagonizar o quarto filme da franquia, é esquecido pela mídia e pela indústria cinematográfica. Tentando retomar sua carreira, Riggan aposta alto em sua peça, composta pelos atores Mike Shiner (Edward Norton), Lesley (Naomi Watts) e Laura (Andrea Riseborough).
Além dos problemas referentes à peça, Riggan tem que enfrentar-se, constantemente, com seu produtor Brandon (Zach Galifianakis), com sua filha problemática Sam (Emma Stone), com sua ex-mulher Sylvia (Amy Ryan), com a crítica teatral mal-humorada Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan) e, como se não bastasse, com seu alter-ego, a personagem Birdman, que questiona suas decisões.
Percebe-se, então, que a trajetória de Riggan e Keaton assemelha-se, dando a entender que o filme de González Iñárritu é uma sátira à carreira de Michel, entretanto, a obra traz elementos mais profundos. Primeiramente, Birdman é o ponto de inflexão do cineasta mexicano, que nunca se aventurou pelos lados da comédia (González Iñárritu dirigiu, anteriormente, grandes dramas como Amores Brutos, 21 Gramas, Babel e Biutiful). Muitos críticos rotulam essa produção como comédia, eu, por um lado, classifico-a como uma tragicomédia, pelos elementos apresentados, apesar de que a rotulação de uma obra artística é uma das muitas críticas apresentadas no longa-metragem.
Segundo, o filme explora magistralmente a metalinguagem cinematográfica, algo semelhante ao incrível Adaptação (2002), de Spike Jonze e roteirizado por Charlie Kaufman. Esse recurso está desde as familiaridades existentes na trajetória das personagens e dos atores (o caso de Riggan/Keaton, em relação ao sucesso meteórico e o fracasso, e também o caso de Shiner/Norton, ambos geniais, mas que são difíceis de trabalhar), até a introdução de uma personagem tocando bateria no meio da rua, enquanto pensamos que o som estava exclusivamente em off.
Terceiro, há uma intensa crítica à indústria cinematográfica, às relações de Hollywood com a Broadway, e também o papel do próprio crítico, seja o de cinema ou o de teatro, ou qualquer outra manifestação artística. Em relação ao primeiro item, constantemente, observamos no longa-metragem um comentário ácido em relação aos filmes de ação e de super-heróis e sua relação com filmes mais sérios e artísticos. Essa questão é refletida na fala de Birdman a Riggan, durante um dos muitos delírios do ator, quando diz: “Dê às pessoas o que elas querem. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga. ‘Birdman, a Fênix Ressurge’. (…). O mundo inteiro garantido. Você é maior que a vida, cara. Você salva o povo de suas vidas chatas e miseráveis. Você os faz pular, rir, sujarem as calças. (…). Armas pesadas, tanques, mísseis. Olhe para eles, para os olhos deles… Eles estão brilhando. Eles amam sangue, amam ação. Nada dessa conversa depressiva e filosófica. (…) E da próxima vez que você gritar, irá explodir no tímpano de milhões de pessoas. Brilhará em milhares de telas ao redor do mundo”.
Os dois outros itens estão relacionados, pois o fato de atores hollywoodianos atuarem em peças da Broadway é mal visto pela crítica, pois consideram que essas atividades não são artísticas, mas comerciais, destinadas a um pequeno grupo de celebridades, sem técnica, inexperientes e sem nenhuma qualidade. Essa visão é reproduzida no filme através dos comentários de Tabitha, que está destinada a acabar com a peça de Riggan, visto por ela como a autopromoção de uma celebridade fracassada.
É nesse ponto que entra a crítica aos críticos cinematográficos ou teatrais. Acredito que seja nesse exato momento que González Iñárritu (e também os outros roteiristas) expressa sua opinião em relação a esses profissionais. Na cena em que Riggan discute com Tabitha, este a questiona sobre seus comentários acerca das peças teatrais, apontando em seu texto chavões, comparações infundadas, a ausência de opiniões sobre técnicas, estruturas e intensidade, e também o problema de sempre rotular, tanto estilos quanto pessoas. A seguir, Riggan indaga Tabitha sobre o quanto custou a ela àquela obra teatral, concluindo que não havia custado nada (qual artista não sente vontade de dizer isso a um crítico?).
Quarto, a construção das personagens nesse filme é fantástica. O protagonista (Riggan) vive uma crise identitária e existencial, questionando o real e criando um mundo fictício (isso pode ser constatado através da voz de seu alter-ego e de imagens de cometas cruzando o céu). Mas essa crise não é apenas de Riggan, mas perpassa a todas as personagens: Sam, uma garota problema que tem uma vida deslocada; Mike, que leva uma vida patética (com sua grosseria e arrogância) e desloca para a arte toda sua frustração; Lesley, uma atriz insegura que questiona sua profissão e suas relações amorosas; e Laura, que demonstra uma paixão imensa por Riggan, mas é desprezada por ele. Esses conflitos identitários/existenciais formam parte da maioria das personagens existentes nos filmes de González Iñárritu, destacando 21 Gramas, Babel e Biutifil.
A interpretação do elenco está formidável, com destaque para Keaton, que certamente levará a estatueta do Oscar na categoria de melhor ator, Norton e Stone. Watts e Galifianakis, apesar de seus papéis secundários, brilham diante das câmeras. Resumindo, todos os atores têm seus momentos no decorrer do filme, e isso engradece ainda mais a obra. Dessa forma, o longa-metragem não é nada mais que um tributo aos atores e todas as manifestações artísticas.
A parte técnica é um dos pilares essenciais do filme. Utilizando longas tomadas (um mecanismo utilizado por outro cineasta mexicano, Alfonso Cuarón, em seu filme Gravidade), dando a impressão de um plano-sequência (algo semelhante ao clássico Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock), tendo uma fotografia impecável, mérito de Emmanuel Lubezki, e prendendo o espectador através do som de uma bateria eletrizante, proporcionada por Antonio Sanchez, o filme de González Iñárritu é uma obra de arte intocável que apresenta distintos temas para a reflexão do espectador. Não é um filme fácil de entender, mas é nesse ponto que está o seu mérito, pois exige que o espectador não apenas “compre” as mensagens trazidas pelo longa-metragem, mas que pense e medite mais com as informações levadas a ele.
O amor à arte, as disputas proporcionadas pelo ego, os dilemas existenciais/identitários, as ações impulsivas e as consequências imediatas, a necessidade de superação e a redenção compõe a inesperada virtude da ignorância (entendida como um rito de passagem importantíssimo na trama).
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) – Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Ano: 2014
Direção: Alejandro González Iñárritu.
Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Alexander Dinelaris, Armando Bo, Nicolás Giacobone.
Elenco principal: Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Naomi Watts, Zach Galifianakis.
Fotografia: Emmanuel Lubezki.
Gênero: Drama, Comédia.
Origem: Estados Unidos.
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