Não deixa de soar algo irônico o título do filme ser Indústria Americana. Sua história, na verdade, aponta para um sentido contrário a esse: assistimos a episódios de uma fábrica que, em solo norte-americano, passa por um acelerado processo de desamericanização, a partir da ascensão de relevo econômico cada vez maior da China.
Tudo começa nas ressonâncias da crise de 2008. Em uma pequena cidade com cerca de 7 mil habitantes do centro-leste dos EUA (Moraine, Ohio), uma fábrica da General Motors (GM) fecha as portas, despedindo cerca de 2 mil empregados. Nem é preciso descrever o tamanho do impacto para a população do entorno, mesmo considerando que parte dos trabalhadores viviam no município vizinho Dayton, de médio porte. Vale como exemplo o fato de alguns ex-funcionários terem atingido a pobreza, chegando a casos de perda de moradia.
Em 2014, contudo, ventos sopraram do oriente: a companhia chinesa Fuyao Glass comprou a antiga planta da GM e instalou ali uma nova fábrica de produção de vidros automotivos. Muitos dos ex-empregados da antiga empresa estariam novamente trabalhando. Além deles, centenas de chineses foram também contratados. A intenção da Fuyao era, assim, criar um ambiente em que pessoas dos EUA e da China trabalhassem de modo integrado. Tudo parece muito harmônico no mundo das ideias, até que, como já poderíamos supor, aparecem os primeiros desentendimentos provenientes do abismo cultural e político posto entre os países, não muito pacífico como o oceano que os separa.
De início, podemos até achar graça quando, em um treinamento de recepção dos empregados chineses, um instrutor compatriota tenta os tranquilizar com frases do tipo: “Aqui é tudo tranquilo. Não fazendo nada contra as leis, você não terá problemas. Pode até falar mal do presidente que não será preso”. Também quando os chineses se queixam do ritmo de trabalho dos norte-americanos: “Temos que explicar tudo duas vezes. Eles têm dificuldade porque têm dedos gordos”. Ou ainda na incompreensão de ironias – um funcionário local brinca que seria preciso colar uma fita adesiva na boca dos trabalhadores para não conversarem tanto no serviço, e seu interlocutor chinês parece levar a sério a sugestão.
Mas a coisa fica séria quando esse disritmia cultural se expressa em maus resultados na produção. A fábrica americana fica muito distante dos números alcançados pelas filiais em território Chinês. A Fuyao tenta enrijecer o trabalho, chega a enviar alguns gerentes para uma experiência na China, mas não adianta. As tentativas de transplantar os métodos de trabalho do país oriental resultam em experiências estapafúrdias, como quando um supervisor tenta fazer uma reunião motivacional pela manhã com os funcionários norte-americanos. Parece que estamos diante de um autêntico número de Michael Scott, da série The Office.
Diante da continuidade de maus resultados, o caldo cultural engrossa e a fábrica se reveste cada vez mais de atmosfera chinesa: profissionais desse país são postos no lugar de gerentes americanos e as condições de trabalho se tornam cada vez mais extenuantes, o que, por sua vez, levam a conflitos a respeito de direitos trabalhistas e sindicalização.
Mais do que um embate entre políticas trabalhistas mais brandas (sim, perto da China, onde os trabalhadores podem ter jornada diária de 12h, apenas duas folgas por mês e cumprimento de horas extras forçadas, os EUA parecem o éden do trabalhador) e severas, o Indústria Americana desliza sobre a desarticulação entre perspectivas de vida completamente distintas, o que se estende desde a visão disciplinada do trabalho até as nuances de humor.
Deslizamentos também são vistos nos movimentos de câmera que, desde a abertura de Indústria Americana, sobrevoam de perto o processo de feitura dos vidros, rendendo belas imagens. Esses movimentos sutis da filmagem, somados à textura limpíssima como vidro das imagens e a ausência de voice over, favorecem um efeito de pouca intervenção explicitada dos documentaristas (nota-se a presença de uma instância externa apenas nas pequenas inserções de texto).
O grande feito de Indústria Americana, assim, está em aliar um suposto distanciamento da equipe do filme em relação aos conflitos retratados em tela a uma imersão de imagens e depoimentos. Estes, nos nos mantém vidrados, deixando transparecer até mesmo conflitos subjetivos do presidente da Fuyao, o bilionário Cao Dewang, figura enigmática que particularmente vejo como grande personagem do filme.
Claro, não devemos nos esquecer que, por mais que haja um efeito de neutralidade, o documentário foi feito e produzido por profissionais norte-americanos. Portanto, o ponto de vista “ocidental” é inescapável. Contudo, o longa não derrapa em julgamentos. Da mesma maneira que os trabalhadores dos EUA e nós, enquanto público do filme muito mais imerso na cultura norte-americana do que na chinesa, estranhamos algumas atitudes dos empregados orientais, Indústria Americana também apresenta o espanto deles quando se deparam, por exemplo, com o culto às armas dos estadunidenses. Tenho muito curiosidade de saber como o público chinês reagiria ao assistir ao filme.
Vale dizer, por fim, que o trabalho dos diretores Steven Bognar e Julia Reichert vem realmente desde a crise de 2008, quando começaram a fazer o filme The Last Truck: Closing of a GM Plant (2009), concorrente do Oscar de 2010 na categoria melhor documentário em curta metragem. Indústria Americana surge com grandes chances na disputa da estatueta de melhor documentário no Oscar de 2020, favorecido ainda por ser o primeiro lançamento da produtora do casal Obama na Netflix.