Por Felipe Mendes
Desde tempos longínquos, obras literárias e cinematográficas criam ambientes distópicos relacionados a revoluções dos bichos. As inúmeras sequências de filmes como Planeta dos Macacos evidenciam o interesse dos seres humanos acerca de tal peripécia. Contudo, o sucesso de bilheteria dessas grandes produções acaba ofuscando obras independentes sobre o tema. Em White God (Fehér Isten), longa de Kornél Mundruczó, o caos emerge através de uma rebelião de cães mestiços nas ruas de Budapeste. A fábula retrata o amor e a dor da separação entre uma garota e seu melhor amigo, o meio labrador Hagen. O longa causou frisson ao receber o prêmio da mostra Um Certo Olhar, além do carismático Palm Dog, no Festival de Cannes de 2014.
A obra de Mundruczó inicia-se com uma cena visceral, para deixar claro que White God em nada se assemelha às produções hollywoodianas que banalizaram a figura dos caninos nas telonas. Na cena em questão, Lili (Zsófia Psotta) move os pedais de sua bicicleta pelas desertas ruas de Budapeste à busca de Hagen. A tranquilidade do cenário dura poucos segundos. De repente, um exército de cães sedentos invade a tela, protagonizando uma das melhores sequências vistas no cinema recente. A distopia tem origem a partir de uma tributação imposta pelo governo húngaro aos donos de vira-latas. Aqueles que não atendem a exigência, têm os cães levados para um abrigo pela inspeção canina. A metáfora realça a perseguição e a tentativa de extermínio das raças impuras praticada por ditadores ao decorrer dos anos e que, ainda hoje, ilustra a situação de refugiados no continente europeu.
Além de tocar em aspectos essenciais como preconceito e exclusão social, o longa destaca a paternidade em segundo plano. A relação obtusa entre Dániel (Sándor Zsótér) e Lili torna-se cada vez mais conflituosa, tendo o cão como entrave. O pai da garota deixa claro que não estaria disposto a pagar a taxa exigida pelas autoridades. No ápice de uma das discussões entre eles, o cachorro é expulso do veículo. A despeito do sofrimento de Lili, o dócil Hagen é entregue à própria sorte nas ruas frias de Budapeste. A partir daí, o espectador passa a acompanhar a odisseia do cão doméstico entre os vales de um submundo violento, repleto de ganância. A angústia de Hagen sob a crueldade dos seres humanos é semelhante a vivida pelo vilipendiado burro Balthazar, no clássico francês A Grande Testemunha.
White God pode ser considerado um apêndice da peça teatral Desonra (Disgrace), romance do escritor sul-africano J. M. Coetzee, adaptado aos palcos por Mundruczó, em 2012. O cineasta húngaro apresenta através dos cães, similaridades entre os tempos nefastos do Apartheid e os conflitos étnicos, econômicos e de ordem social residentes no leste europeu. Ademais, o conceito em White God se refere a forma como os cães veem os seres humanos, uma classe superior e predominantemente branca. Apesar dos vários aspectos positivos, o longa não mantém uma linearidade em relação a qualidade. A atuação de Zsófia Psotta beira a apatia em certos momentos. A jovem atriz não consegue transparecer o amor e a preocupação da personagem acerca do paradeiro de seu cachorro. A trajetória da adolescente rebelde cai demasiadamente em desinteresse se comparado aos momentos obscuros do canino.
As relações de amor e ódio entre cães e seres humanos serviram de pano de fundo para algumas produções consagradas, como Amores Brutos e o clássico Cão Branco. Inclusive, é possível encontrar ligações entre as obras de Mundruczó e Samuel Fuller – apesar da refutação do húngaro quando questionado sobre semelhanças no Festival de Cannes. Em Cão Branco, as lentes complexas de Fuller apontam o racismo com a mesma barbárie daqueles que o disseminam. Assim como Hagen é torturado e treinado para o ódio, o cão de pelos brancos concentra a sua ferocidade e hostilidade em oposição aos negros no filme reprimido de Fuller. Além de algumas cenas difíceis de serem digeridas pelo alto teor de violência, ambas as produções têm as atuações dos caninos como trunfo.
Enquanto a performance da protagonista não empolga os olhares mais críticos, o mesmo argumento não se estende acerca dos cães em White God. A começar pelo líder da revolta canina, interpretado fabulosamente por Luke e Body, irmãos mestiços das raças labrador e sharpei. Os gêmeos foram encontrados após dois meses de consultas às listas de cães disponíveis para adoção no subúrbio do Arizona, nos Estados Unidos. As expressões da dupla que conduz a trama foram aprimoradas com auxílio da talentosa treinadora Teresa Ann Miller. Após três meses de preparação, os astros desembarcaram em Budapeste para se agruparem aos cães treinados por Árpád Halász. A consolidação do trabalho é incrível, como nunca visto antes em produções cinematográficas. O cineasta acerta ao abolir a computação gráfica no longa, regendo com extrema astúcia uma obra com mais de 250 cães em cena.
Esse contexto repleto de tensões geopolíticas é consolidado através de uma trilha sonora poderosa, composta por Asher Goldschmidt. A música funciona como elemento crucial para o desenrolar da história, que tramita entre gêneros como drama, ação e terror. Além do sofrimento de Hagen, o longa denota a trajetória de Lili como trompetista. Entre percalços nos relacionamentos com o pai e um rígido professor de música, a garota se prepara para o dia em que testará suas habilidades com “amigos” da orquestra. A ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, determina a principal lição para o filme. Acima de tudo, White God representa uma jornada de redenção através do amor entre Lili e Hagen. Após provarem a crueldade dos seres humanos, o reencontro da dupla se transforma em uma bela demonstração de respeito e igualdade entre raças.
WHITE GOD (Fehér Isten)
Ano: 2014
Direção: Kornél Mundruczó
Roteiro: Kornél Mundruczó, Viktória Petrány, Kata Wéber
Elenco Principal: Zsófia Psotta, Sándor Zsótér
Gênero: Drama, Terror
Nacionalidade: Hungria, Alemanha, Suécia
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