Por Aline Fernanda.

O lixo faz parte da vida. O final do serviço é o lixo. E é dali que começa”.

Em entrevista para a jornalista María Campaña Ramia, Coutinho comentou que não fez nenhuma pesquisa prévia, que o filme foi feito meio que sem planejamento: “Boca do Lixo foi feito sem nenhuma pesquisa prévia, graças à Deus. Fomos do começo ao fim sem nenhum informante local. Lembro que filmamos de longe uma senhora já idosa, que caminhava com outra mulher. Quando chegamos, conversamos e ela disse: “Me chama para aparecer na televisão”. Essa mesma tarde nos pediu uma carona no meio da rua e daí veio a filha, a  que canta, uma pessoa extraordinária. Então são coincidências, e quando acontece assim é maravilhoso.”

Além de mostrar com são as vidas de quem vive do lixo, Coutinho tenta mostrar que para algumas pessoas isso é opção, para algumas é orgulho, enquanto para outras, vergonha. O desconforto ataca quem é filmado, quem filma, quem assiste e quem está trabalhando não quer aparecer na televisão, quem filma mostra em certos momentos um “constrangimento” em invadir e fazer uma pergunta que parece ter resposta certa: “como é que é o trabalho aqui? É bom o trabalho aqui?”.  Pessoas “brigando” por espaço, concorrendo com os bichos (urubus, porcos, cavalos), com o tempo (afinal de contas o tempo age na decomposição das coisas).

Nada de introdução, nada de preparação, somos logo apresentados ao que será o cenário, apresentado à Boca de Lixo, como é conhecido o vazadouro de Itaoca em São Gonçalo (RJ). Logo os catadores explicam: os restos dali, quando chegavam ali, já tinham sido catados previamente para separar as coisas aproveitáveis. Sobrava para eles o lixo do lixo.

Então, ali, onde nada parece possível, organiza-se uma vida social. As pessoas se relacionam, sorriem, as crianças jogam futebol, baralho, bola de gude, os adultos escutam música, descansam em restos de sofás e tomam alguma coisa. Lúcia, uma das entrevistadas, afirma que os dias que fica sem ir pro lixo se sente triste porque lá ela fez amizades e se diverte.

O longa trata das pessoas que sobrevivem do lixo, mas é mais do que isso, se trata de mostrar outros aspectos dessas pessoas, apresentando a pessoa que poderia ser qualquer um de nós. Além de falar das dificuldades que enfrentam fala de cotidiano, de história de vida.

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Os entrevistados Nirinha, Lúcia, Cícera, Enock e Jurema

Eu procuro respeitar a cronologia da filmagem e não entrar em um processo ficcionalizante. É claro que sempre que você contar uma narrativa haverá um lado ficcional. E sem narrativa não há documentário, mas a montagem pode privilegiar a ficção. Eu tento manter uma certa lógica de progressão de personagem e da ação.”

O documentário da ênfase na história de cinco catadores de lixo: Nirinha, Lúcia, Cícera, Enock e Jurema. As entrevistas são mais longas, começam no “lixo” e terminam nas casas dos personagens.

Coutinho comenta, “Em Boca do Lixo eu fui à casa de cinco pessoas, depois fui à da Jurema, aquela negra linda. Liguei a câmera, o som e a chamei. A partir daí, tudo o que acontece é contínuo: ela aparece na porta e vem falar, as crianças estavam na porta, aparece à mãe dela e abre a janela, depois vem o marido na outra janela. E é um teatro, a mãe aqui, o marido ali, os nove filhos e ela. E foi maravilhoso. As filmagens são assim: acontecem ou não. Aquilo tudo aconteceu em meia hora. E só no final da conversa ela confessa que eles comem lixo: “A gente come mesmo, mas não tem sentido mostrar, não quero que mostre para os outros. Não adianta nada, alguém vai me ajudar?”. Isso eu mantive. Eu poderia tirar na montagem as situações em que aparecem as pessoas se criticando, me criticando ou criticando a situação. Mas eu faço questão de deixar, explicitando o processo de um documentário. E se eu estou deixando é porque acho que tem algo ali que faz pensar. (…) Não me interessa o plano curto. Eu quero a dimensão temporal das coisas. ÀS vezes uma pessoa fala, e é cinco, três minutos, e é isso mesmo. Tem uma densidade, tem progressão, ela hesita, volta para trás. Isso é inadmissível na televisão. As pessoas têm um tempo, têm uma memória, tem um passado, mas para isso vir à tona tem uma temporalidade, que precisa entrar nos planos, na edição. Essa dimensão do tempo está no conteúdo e na forma, na memória e no plano. Por isso a  televisão não me interessa, ela vive no presente puro.”

O livro Eduardo Coutinho/Milton Ohata (org.), lançado em 2013 por ocasião da homenagem que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo fez ao cineasta, foi uma das referências usadas para a elaboração desse texto.

Veja o vídeo: