“Cinema é isto: se você conta mal, não adianta ter uma boa história. Saber contar é essencial. E não tem nada a ver com caráter. Às vezes um bom caráter é um mau contador. Há pessoas que são chatas”.
Por Frederico Cabala
“Viemos à Paraíba para tentar fazer, em quatro semanas, um filme sem nenhum tipo de pesquisa prévia, nenhum tema em particular, nenhuma locação em particular. Queremos achar uma comunidade rural que a gente goste e que nos aceite. Talvez a gente não ache nenhuma e aí o filme se torne essa procura de uma locação, de um tema, e sobretudo de personagens”.
A narração em off, que abre O Fim e o Princípio (2005), condensa um tanto do percurso de Eduardo Coutinho no cinema documental brasileiro. A rejeição de roteiros, a fuga de pautas e do preestabelecido são aliadas à busca de histórias e personagens singulares — sempre anônimos — como matéria essencial. Dispondo do domínio de regras do improviso, sua técnica sempre se aplica a partir de um mergulho em uma determinada realidade e em determinada estética. E, assim, o diretor opta por explorar o que há de singular na generalidade – uma voz em vez do padrão – e posiciona pessoas acima de temas.
Mas não dá pra definir vida e obra de Coutinho somente a partir disso. O caminho profissional do diretor é de muitas andanças, e o seu lado documentarista só é aflorado na maturidade. Cabra Marcado Para Morrer (1984), que impulsionou o diretor definitivamente em direção ao gênero documentário, foi lançado quando o diretor tinha 50 anos.
Até início da década de 1970, como o próprio afirmou em entrevista, Coutinho “não sabia bem o que queria fazer”, e transitou entre o jornalismo e o cinema. Trabalhou no Jornal do Brasil — inclusive como crítico de filmes —, assinou três longas de ficção (a essa altura tendo abandonado Cabra Marcado, que seria ficção, por ocasião do golpe militar), e se dedicou também a escrever roteiros.
Ainda sem encontrar lugar no cinema em 1975, Coutinho se aproxima novamente do jornalismo e passa a integrar equipe do Globo Repórter, assumindo diversas funções de redação. E é nessa época que os laços com o tipo de documentário que ele viria a fazer são formados.
O Globo Repórter da época pouco tinha a ver com o atual. Coutinho lidou com o dia-a-dia de filmar em diversas circunstâncias e teve oportunidade de dirigir alguns episódios do programa que chamava atenção pela liberdade de conteúdo e forma, isso incrivelmente em plena ditadura. Theodorico, o Imperador do Sertão (1978), exibido no programa e dirigido por Coutinho, é significativo como expressão dessa liberdade. Centrado e narrado por um único personagem, com longos planos de três minutos e exposição da equipe de filmagens, o filme é sobre um dos últimos representantes do coronelismo no interior do Rio Grande do Norte.
A relação de servilismo quase feudal imposta por Theodorico para com seus empregados, o machismo gritante, a política de curral seriam elementos pra consumar julgamentos sobre o personagem. Mas Coutinho não passeia por aí. Como característica do seu cinema daí em diante, o cineasta não mastiga ideias fechadas para o espectador, mas se atém a pinçar intimidades e permite que, assim, o entrevistado se revele.
Theodorico, o Imperador do Sertão foi, até agora, o único documentário em que Coutinho se debruça em personagem pertencente à elite. Desde então, o diretor passou a ter predileção pelos desconhecidos e deu tom somente às vozes consideradas desimportantes pela sociedade. É assim em Boca do lixo (1992), Babilônia 2000 (2001), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e o Princípio (2005).
Com nove filmes realizados nos últimos 13 anos, a alta produtividade de Coutinho destoa do comum. Com economia de recursos e equipamento, o diretor pratica um cinema que desperta vontade de fazer cinema. E que, apesar de pouco rebuscado em termos técnicos, é muito pensado. João Cabral de Melo Neto escreveu que as flores não precisam ser perfumadas e a poesia não precisa ser poetizada. Coutinho parece ter a visão disso, enxergando beleza e singularidade em diferentes cotidianos e os retratando de modo profundo sem apelar para o exagero. Talvez esse senso do essencial seja a marca responsável para o trabalho de Eduardo Coutinho ter influenciado tanto o que surgiu depois em termos de documentário, principalmente a partir dos anos 2000. Difícil passar pela história do cinema brasileiro sem se dar conta de Coutinho, assim como é difícil passar por Coutinho sem descobrir mais sobre o próprio país.
Veja o vídeo que fizemos em debate com o diretor: