Dentro da filmografia de Coutinho, Um dia na vida (2010) pode ser tudo, menos o que a sentença sugere: algo cotidiano, repetitivo, cíclico. Pelo contrário, esse filme resulta de um experimento cinematográfico que se interpõe como um problema para os críticos que se propõem a decifrá-lo: como classificar, como aclarar… enfim, como lidar com um documentário tão inusitado na carreira do diretor e à primeira vista tão arredio a análises?
Digamos logo do que se trata o filme: um amontoado de imagens captadas na TV aberta durante um dia comum do ano de 2009. Entre o amanhecer de 1º de outubro, uma quinta-feira, e a madrugada do dia seguinte, totalizando 19 horas, diretor e equipe gravaram programas da Bandeirantes, RedeTV, CNT, Globo, Record, SBT, TV Brasil e MTV. No material finalizado, reduzido a 94 minutos, vê-se de tudo: teleaula de inglês, publicidade infantil, propaganda política, Ana Maria Braga jogando Guitar Hero, Dr. Rey, Márcia Goldschmidt, Sônia Abrão, Wagner Montes ensinando a matar bandido, o helicóptero do programa de Datena filmando uma pessoa entre a vida e a morte, igreja, e tome-lhe mais igreja, fofoca, e mais fofoca, e telejornais. Além, claro, dos programas de venda — como o da “mão dos anéis”, pelo qual Coutinho dizia ser fascinado.
Ficamos com a impressão de que, se assistida ao longo de um dia, a programação pode até ter um efeito diluído, mas, espremida em uma hora e meia, dela se resulta um concentrado do horror. Acrescente-se a isso o fato de não estarmos com um controle remoto ao alcance das mãos. (Esse filme, aliás, é daqueles cuja experiência ideal exigiria uma sala de cinema.). As imagens a que somos expostos podem ser divididas em três eixos principais: da religião, da violência e da sexualização da mulher (também uma violência). Até os que não costumam assistir à televisão aberta sabem que é mais ou menos por aí que a banda toca, mas a edição condensada da programação e a transposição das imagens da TV para o cinema tendem a potencializar o impacto. Desse jeito, ver o filme é uma experiência quase insuportável, que dificilmente alguém gostaria de repetir, o que, de certa forma, atesta o propósito do longa. Por um lado desagradável, o ato de assistir a Um dia na vida é ao mesmo tempo fecundo para a percepção crítica de como operam os canais de televisão que, lembremos, são concessões públicas.
Apesar de registrar esse cenário bizarro, o filme não faz uso de narração, comentários, legendagem, enfim, nada que pudesse fornecer uma aparência de julgamento ou de explicação para o assunto. Aqui podemos inferir que esse projeto de alguma forma se conecta aos outros planos do diretor. Em seus outros filmes, vemos quase sempre personagens de camadas populares e a própria cultura popular em evidência. Neste Um dia na vida, vê-se o que se supõe ser visto por aquele mesmo público, principalmente se considerarmos o contexto de produção de filme, feito há 10 anos, quando o boom da TV por assinatura ou serviços de streaming não ameaçavam o circuito aberto tal qual hoje. Trata-se de um dia comum na vida de uma pessoa comum, e aí o sentido do título passa a valer.
Talvez por isso, Coutinho revelou, em um dos debates do qual participou a respeito do filme, que seu maior desejo seria exibir o documentário em uma comunidade do Rio de Janeiro para notar a recepção do público. Com Um dia na vida, aliás, a projeção do longa de maneira não comercial seguida de debate foi praticamente o único expediente disponível. Travado pelo risco de ser processado em função de usos não autorizados de imagens, o diretor foi forçado a fazer lançamentos somente em festivais e universidades, sem nunca criar anúncios em meios de comunicação. A assinatura do diretor não aparece em momento algum do filme que, por sua vez, nunca foi lançado em DVD. Nos créditos iniciais, o seguinte aviso é apresentado: “Material gravado como pesquisa para um filme futuro.”. Em sequência, somente somos informados a respeito da data e canais de gravação.
De fato, o documentarista revelou que sua ideia inicial seria utilizar o apanhado de imagens da TV para produzir um documentário-paródia, no qual atores interpretariam as cenas televisivas e haveria inserção de frases de autores como Karl Marx e Flaubert e até trechos de uma revista de etiqueta dos anos de 1940, tensionando a ideia de plágio na sociedade contemporânea. Dada a dimensão que o projeto tomou, com necessidade de produção maior, seleção de vários atores, e ainda sob risco de processo judicial, Eduardo Coutinho diz ter desistido dessa continuação e optado por fazer um filme mais simples e que também seria do seu agrado. Daí veio As canções.
Um dia na vida, então, parece não ser um objeto tão alienígena assim na trajetória do diretor, principalmente se levarmos em conta os rumos que ele trilhou a partir de Jogo de cena (2007), realçando seu interesse na fragmentação da subjetividade e na teatralização da vida. Através de um procedimento de colagens diversas, esse filme bastante experimental se aproxima das realizações das vanguardas na combinação de elementos do cotidiano que, associados em outro tipo suporte, criam uma experiência totalmente diferente. Coutinho deve ter percebido, com a montagem, que não seria mais necessário mesmo fazer encenação em cima daquelas imagens, por si só já bordadas em narrativas de viés melodramático e repletas de atuações.
O filme completo se encontra disponível aqui: