Por Frederico Cabala
Enquanto uma van corta estrada da Paraíba, a voz rouca de Coutinho indica que esse filme começa do zero, sem nenhum tipo de pesquisa prévia. Há apenas a ideia de registrar, durante algumas semanas, como vivem as pessoas de algum pequeno povoado rural do sertão nordestino. Caso a equipe de filmagem nada obtenha, o filme será sobre a própria tentativa fracassada.
Essa espécie de prólogo condensa muito do percurso do diretor. De alguma forma, o ponto de partida dele tendeu sempre pro zero. Dono de uma capacidade singular de gerar empatia, o cineasta afirmou mais de uma vez que tinha lá suas pequenas utopias. Dentre essas miúdas ambições, revelava acreditar no dever de se esvaziar de ideias preconcebidas para estar aberto às experiências de seus entrevistados (ou personagens, como preferia chamar).
Na edição de 2013 da Flip, Coutinho participou de uma mesa mediada por Eduardo Escorel. Às tantas na conversa, Escorel apresentou ao público uma folha de livro que pertencera ao diretor de O Fim e o Princípio e estava sublinhada pelo mesmo. O trecho era de A Miséria do Mundo, de Bourdieu, e dizia:
“A entrevista pode ser considerada como uma forma de exercício espiritual, visando obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os problemas do pesquisado, sendo a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é, na sua necessidade singular é uma espécie de amor intelectual”.
Uma feliz conjunção entre ideia de um e prática de outro, a página solta pertencia a um livro publicado em 1999, mesmo ano em que Coutinho tem sua retomada pessoal no cinema com Santo Forte, a partir do qual as conversas vão ganhando cada vez maior lugar em seus filmes.
Em O fim e o princípio, a abertura em off, além de denotar grande liberdade ao refutar roteiro prévio, paradoxalmente também deixa transparecer o que Coutinho chamava de “regras do jogo”, com as quais ele parecia ser exigente. Entre elas, o tempo e o espaço. O prazo seria de poucas semanas estabelecidas e do material obtido haveria de tirar leite de pedra caso preciso. A locação deveria sempre que pudesse ser num pequeno espaço ou com um grupo limitado: uma favela, um prédio, ou, o caso desse filme, uma comunidade rural.
Filme em busca de personagens, O fim e o princípio é a volta de Coutinho ao Nordeste. Décadas após seus documentários pro Globo Repórter e vinte anos após Cabra Marcado para Morrer, Coutinho volta para a região que o fascinava pela riqueza oral. “Se eu tiver que escolher entre dois projetos – um sobre um tema medíocre filmado no sertão do Nordeste e um sobre um tema quente filmado na cidade de São Paulo -, eu escolho o do Nordeste. A linguagem oral é essencial no imaginário presente, no lugar em que a cultura industrial não penetrou tanto”, disse ele numa entrevista.
No sertão da Paraíba, a equipe se hospeda na pequena cidade de São João do Rio do Peixe para dali buscar comunidades. O território desconhecido faz Coutinho buscar uma moça da pastoral da juventude como guia local, Rosa, cuja presença passa a ser central como elo entre diretor e personagens. O desenrolar do filme se finca no sítio de Araçás, povoado em que Rosa conhece de perto os moradores, muitos com laços de parentesco.
Assim, a câmera passa captar a riqueza íntima de personagens do interior sertanejo. A maioria velhos. Solidão, viuvez, religiosidade, morte e vida são temas que entrecortam as conversas. Impressiona como Coutinho sabe verdadeiramente se comunicar com pessoas que, embora semelhantes em idade, pertencem a um outro radical.
Exemplo é a conversa com Leocádio. Este fala sobre livros preferidos e cita Gomes de Barros, cordel e romances de folheto, ao que Coutinho responde: “Você conhece Cancão de Fogo? João Grilo? Camões?”.
Mariquinha, outra personagem, é viúva, teve catorze filhos, mas apenas dois sobreviveram. Ele pergunta se ela tem medo da morte, ela diz que sim e rebate à queima-roupa mesma questão, ao que ele responde “claro que tenho”.
Impressiona também os momentos em que a comunicação não flui e o diretor não se incomoda em pedir auxílio a Rosa e incluir na montagem final do filme as tantas vezes em que a moça interveio na condução de perguntas.
O fim e o princípio se desenha como um retorno a um universo conhecido do diretor, seu princípio como documentarista, e ainda aponta para o fim de um ciclo. Este é último filme de Coutinho em uma locação real, antes de mais uma reinvenção do diretor, que passaria a usar mais estúdios em seus trabalhos.
Veja o trailer: