É difícil pensar em Peões (2004), de Eduardo Coutinho, sem o seu díptico Entreatos (2004), de João Moreira Salles. O primeiro, uma busca pelos personagens das greves dos metalúrgicos do ABC, e o segundo, uma imersão na campanha presidencial de Lula em 2002, somados formam um panorama sobre o ambiente de esperança que tomou conta de boa parte do Brasil naquele ano. Não à toa, os filmes foram lançados em conjunto.
A ideia inicial, segundo os próprios diretores, seria a de cada um cobrir uma campanha dos dois candidatos à frente nas pesquisas: Lula e José Serra. Essa ideia durou meses e quase foi à frente. No entanto, já com as pesquisas sobre a campanha do petista sendo desenvolvidas, Coutinho foi fisgado pelo plano de encontrar antigos personagens do ABC que, de certo modo, eram responsáveis pela ascensão do líder sindical que logo seria líder do partido e estava prestes a se tornar presidente do país. No fim das contas, nas palavras do próprio, a escolha foi acertada e “cada um acabou fazendo o filme que queria”.
Sabe aquelas imagens de milhares de trabalhadores em praças abarrotadas da região metropolitana de São Paulo durante as greves de 1979 e 1980, ouvindo discursos de Lula? É como se Entreatos olhasse para aquele personagem em cima do palanque, enquanto Peões estivesse preocupado em encontrar singularidades presentes naquela enorme massa de vitoriosos anônimos. Vinte anos depois, um estaria na corrida para o cargo mais importante do Brasil; e quanto aos outros tantos, como estariam se sentindo?
Para dar conta do plano, Coutinho fugiu um pouco à tendência de seus filmes anteriores: Santo forte (1999), Babilônia 2000 (2000) e Edifício Master (2002) têm em comum a restrição geográfica – uma espécie de prisão que o próprio diretor se impunha para poder trabalhar livremente, dizia. O Fim e o Princípio (2005) retoma essa regra do jogo. Mas como trabalhar de tal maneira um grande tema no qual, decorridas duas décadas, inevitavelmente teria havido dispersão dos envolvidos? Isso ganha intensidade maior quando se considera que boa parte dos participantes daqueles eventos, e dos metalúrgicos como um todo, era oriunda do nordeste e, após tantos anos, muitos já teriam retornado à região de origem. Peões assume o risco e se propõe a captar antes uma rede de relações que um espaço específico.
Por isso, a imagem de abertura se dá com um travelling pelas ruas de uma cidade do Ceará, Várzea Alegre, que, de acordo com Coutinho, é proporcionalmente o lugar do Brasil com maior concentração de metalúrgicos da zona do ABC paulista, visto que muitos imigrantes partiram dali. Durante as pesquisas de planejamento do filme, descobriu-se uma associação de metalúrgicos que congrega cerca de dez mil pessoas, quase todos de Várzea Alegre, o que ramificou o trecho inicial do filme para o nordeste. As entrevistas com esse pessoal do Ceará acaba por revelar que o trajeto rumo ao nordeste é uma condição sem a qual haveria um vácuo naquela história. Os várzea-alegrenses, de volta à terra natal, não perdem os vínculos com São Paulo. Guardam jornais daqueles tempos e lembram-se com entusiasmo da luta por melhores condições, ainda que pontuem os sofrimentos. O personagem Joaquim, por exemplo, voltou ao Ceará já há quatro anos, mas ainda diz que está “só passando uns dias” e não vê a hora de retornar a São Bernardo, “onde aconteceu tudo de importante na minha vida”.
É interessante como, após principiar com entrevistas em Várzea Alegre, o filme se desloca para São Bernardo do Campo e se estabelece na região da grande São Paulo, quase como uma reprise do percurso retirante de tantos milhares dos peões de fábricas do ABC. Nos sindicatos dos antigos metalúrgicos, Coutinho realiza encontros de exibição de filmes sobre as greves, como ABC da Greve (1990), de Leon Hirszman, Linha de Montagem (1982), de Renato Tapajós, e Greve! (1979), de João Batista de Andrade. Além disso, álbuns de fotografia são mostrados. Com esses procedimentos, o cineasta tenta angariar a participação dos ex-metalúrgicos. Mais do que isso, busca ajuda dos membros do sindicato para identificar nos vídeos e nas fotos outros trabalhadores, de preferência anônimos, que estiveram nos movimentos de 79 e 80.
Vem à lembrança Cabra Marcado para Morrer (1984) e a cena da exibição pública do primeiro copião. Fora também por meio desse dispositivo que Coutinho buscou envolvimento e conseguiu encontrar antigos participantes. Assim como no Cabra, Peões também teve que lidar com a forte dispersão de seus personagens, o que explica a inserção do Ceará na montagem. Além disso, parece haver um uso estratégico daquelas velhas imagens, que serviriam também para trazer à vida lembranças já puídas. Todo o cinema de Eduardo Coutinho é, de certo modo, o gesto que torna presente a memória do passado.
Nesse sentido, é singular o que o ex-metalúrgico Avestil diz: “Quanto mais longe a história tiver, melhor é pra você contar. Se aconteceu comigo ontem, se eu contar o cara fala: ‘é mentira’. Mas se aconteceu vinte anos atrás, eu acho que se eu contar a pessoa vai falar: ‘é, é uma história, né?’”. Afastados o suficiente para reelaborarem as dores pretéritas, os personagens tornam vivas suas lembranças, cobrindo com camadas de nostalgia o sofrimento e a tensão de ser peão durante a ditadura militar. O personagem Geraldo solta: “com todo sofrimento, eu tenho saudade”. Zélia, à época servente do sindicato, se lembra sorrindo de como contrabandeava jornais proibidos para dentro da fábrica, e do mesmo modo rememora o episódio em que salvou o rolo do filme Linha de Montagem, escondendo-o em uma sacola quando policiais foram apreendê-lo. “Tenho orgulho de ter salvo o filme. Era a única história que nós tínhamos no momento”, ela fala. Coutinho pergunta: “A senhora alguma vez já viu o filme?”, e ela: “não”. Elza, que trabalhou numa metalúrgica, conta que, em pleno calor, trabalhava com blusas de mangas longas, com gola alta no pescoço, óculos, luvas e avental de lona, e brinca: “era um robô, então quer dizer que as calorias queimavam tudo, da feijoada”.
Uma grande qualidade de Peões é fazer as conversas oscilarem entre os sentimentos de privado e público. É comum os personagens, ao falarem daqueles tempos, se lembrarem do próprio casamento, como João Chapéu. Em outra conversa, Luiza, figura de fascinante força, revela uma briga que teve com seu marido, quando ele tentou furar a greve: “Nós tivemos um grande desentendimento. Não foi tanto por causa de outra coisa, foi só porque eu joguei uma pedra nele”. Mais à frente, ouvimos dela: “A minha simpatia na minha vida é… brigar. Xingar, eu adoro. Falar palavrão, eu adoro”.
Vinculados às próprias histórias particulares, há, de outro lado, uma aura de coletividade que paira também sobre todos os participantes do documentário, fazendo-os sentir parte de um grande acontecimento. Isso se reflete num orgulho pela profissão, como percebemos uma fala de João Chapéu que desestabiliza a ideia de alienação do trabalho: “O meu filho ficou triste porque ele tinha um orgulho de me falar assim, quando ele via um caminhão da Mercedes: ‘pai, naquele caminhão tem uma peça que o senhor fez’”. Mais do que isso, contudo, é o próprio entendimento dos antigos metalúrgicos sobre o valor da militância. Não à toa, alguns dos personagens guardam jornais da época tal qual uma relíquia, como Zé Pretinho, Antônio e Elza.
A chama da coletividade se atiça, certamente, pelo momento das gravações. Coutinho foi certeiro no timing ao realizar as conversas pouco antes da eleição de 2002. Se faz notar nos diálogos o que diziam as pesquisas: o candidato petista estaria por um triz da presidência. As saudosas lembranças, assim, se entrelaçam à sensação de euforia pelo iminente novo tempo que se prometera décadas atrás. Para além das imagens, Lula é um nome que perpassa a maior parte das conversas. Joaquim, lá em Várzea Alegre, se refere ao ex-sindicalista como “segundo pai”, algo semelhante ao tratamento que lhe dá Zélia, ao colocar que Lula é, para ela, como um pai. Elza pontua que “Lula é nosso Hino Nacional”.
Euforias em geral, entretanto, já carregam uma dose da melancolia posterior. É o que parece prefigurar a personagem Tê, em um depoimento que chama atenção pela sensatez: “A nossa proposta de PT, do PT quando nasceu, seria a de jamais entrar naquela política que existia, do convencional, a gente ia querer fazer sempre um trabalho de base, de comunidade. Aquele PT que eu ajudei a fundar em um fundinho de quintal, hoje eu tô vendo (…) Eu vou deixar bem claro, eu gosto do Lula, eu acho o Lula uma pessoa muito inteligente, vou votar no Lula (…) Mas eu vou dar a minha opinião, eu acho que o Lula está chegando a presidência, não o PT”.
Assistir a Peões hoje, mais de quinze anos depois, nos deixa com a pergunta: “Como pensam eles agora, depois de tantos governos?”.
Há como sabermos?
Poderíamos dar a mesma resposta muda que deu o documentarista ao, após perguntar sobre a vida de peão ao personagem Geraldo, dele receber uma pergunta sem resposta, que resume tudo: “Você já foi peão?”
Em uma pergunta, uma síntese geral do percurso do cineasta. Para Eduardo Coutinho, o ofício de filmar residia no encontro com o outro, não para tornar-se ele, tampouco para sentir o que ele sente, visto que há experiências indizíveis, mas para, dada essa intransmissibilidade, fazer do cinema uma ponte para a compreensão possível daquele outro lugar: isso também se chama empatia.