Por Felippe Gofferman

O cinema japonês tem como características clássicas o pensamento cartesiano e uma tendência à observação passiva da sociedade que retrata, mas como todo cenário cinematográfico teve seus representantes que quebraram a corrente do lugar comum e impuseram uma visão pessoal que fugia dos termos aceito pelas grandes produtoras.

Em meio ao sistema industrial das grandes realizadoras japonesas da década de 1950, surgiu aquele que está entre os diretores mais influentes do país e que até hoje é considerado uma referência da contracultura e do movimento cinematográfico underground: Seijun Suzuki.

O diretor de clássicos como Tóquio Violenta (1966) e Tsigoineruwaizen (1980) estabeleceu sua marca no cinema mundial ao unir um retalho de influências à sua incrível noção visual e de storytelling para criar algumas das mais incríveis obras do cinema japonês.

Definir uma obra-prima em meio à filmografia de Seijun Suzuki é algo muito pessoal, mas dentre seus filmes A Marca do Assassino (1967) possui um lugar especial em qualquer lista, tanto por seu aspecto artístico quanto pelos bastidores de sua produção.

O longa conta a história de Goro Hanada, o terceiro melhor assassino profissional em atividade, que tem sua vida abalada após um trabalho mal feito. Hanada passa então a ser caçado por outros assassinos enquanto lida com sua esposa e uma mulher misteriosa que cruzou seu caminho.

A Marca do Assassino

A Marca do Assassino é um filme que utiliza o Noir como ferramenta, mas não se vê dependente dele. Suzuki trabalha o voyeurismo, o narcisismo, a obsessão humana e diversas sensações sob uma camada de experimentalismo inédita até então no cinema local, mas que logo se tornaria parte fundamental da arte audiovisual do país.

A fotografia espetacular parte de conceitos adquiridos das mais diversas fontes. De jump cuts a planos subjetivos em meio a uma matança, somos guiados como observadores ativos nessa trama de morte, amor, sexo e fixação.

Suzuki desenvolve rimas visuais e consegue combinar perfeitamente seu cinema experimental com a narrativa tradicional, evocando referências de Acossado (1960) de Godard, Um cão andaluz (1929) de Buñuel, da série 007, e até mesmo da pop art e da arte clássica japonesa, como o teatro Kabuki e as pinturas surrealistas.

As rimas funcionam como o reflexo imagético do conflito psicológico dos personagens. O fogo, os isqueiros, o incêndio e o homem em chamas combinam com a passionalidade existente na relação entre Hanada e a misteriosa Misako Nakajo.

Os recorrentes planos dos olhos e das pernas reafirmam o voyeurismo, lhe conferindo um entendimento através do trabalho do protagonista como assassino, pois através de sua mira telescópica o matador observa suas vítimas antes do abate. A fechadura e a mira representam a estranha relação entre amor e perigo na vida de Hanada.

A Marca do Assassino

As borboletas talvez sejam o mais importante signo do filme. Curiosamente sua aparição é uma inteligente brincadeira com a Teoria do Caos em sua exemplificação mais recorrente: “O bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova Iorque”. Ao mirar em seu alvo, Hanada é atrapalhado por uma borboleta que pousa em sua arma e provoca o erro do assassino, acabando assim com sua carreira e mudando sua vida.

A partir daí as borboletas se mesclam com Misako, que havia encomendado o assassinato fracassado, devido a sua obsessão pela morte. Sua casa é repleta de borboletas mortas nas paredes representando sua mente perturbada e o seu efeito sobre o protagonista em sua relação de amor e ódio.

A Marca do Assassino ainda conta com a tentativa de Suzuki de retirar o peso de tabu do sexo e do nu. O uso de corpos nus com frequência não era comum, mas foi uma evolução do erotismo das Bond Girl’s, além de ter o posicionamento de crítica à cultura de tornar o sexo algo vulgar que não deve ser alvo de discussão em uma sociedade civilizada. Ainda hoje o povo japonês cresce sobre grande repressão sexual.

A Marca do Assassino

O diretor japonês mostra o corpo sem medo de censura. Com ou sem roupa, Suzuki usa os corpos dos personagens como expressão artística. O pescoço curvado do protagonista demonstrando o peso de seu erro ou a busca por armas que fazem Hanada rasgar a roupa de Misako e se agarrar à sua cintura em sofrimento pelo amor supostamente não correspondido.

Tudo é construído de forma a criar um panorama geral que, mesmo apesar do experimentalismo de Suzuki, permite entendimento e apreciação como um filme de entretenimento ou de arte, de acordo com o desejo do espectador.

Graças aos planos sensacionais, aos personagens surreais e à inovação técnica, Seijun Suzuki chocou a produtora Nikkatsu, que o demitiu logo após a estreia do filme por “não ser possível entender o filme”. Esse foi o ponto que transformou o diretor em um ícone mundial, pois juntamente a outros cineastas e grupos de cinéfilos, ele conseguiu processar a produtora, o que lhe colocou na lista negra da indústria e lhe impossibilitou de continuar dirigindo até seu retorno, na década de 1970.

O trabalho do diretor, principalmente em A Marca do Assassino, tem sido apontado como referência para diretores como Chan-wook Park, Tarantino e, obviamente, Jim Jamursch, que utilizou muitas ideias de Suzuki em seu Ghost Dog (1999) tendo incluído um agradecimento ao diretor nos créditos. É ainda possível encontrar similaridades no clássico francês do mesmo ano O Samurai (1967), de Jean-Pierre Melville, ou até em Os duelistas (1977) de Ridley Scott.

A Marca do Assassino é uma obra de arte única e totalmente inspiradora. Um must-see de marca maior vinda de uma época complicada para quem quisesse fazer um cinema de autor no Japão. O representante de uma Nova Onda Japonesa e, ao mesmo tempo, um filme que se preocupa em dar algo ao público antes de soar cult.