“Eu estou conseguindo aqui dentro viver e ser o que eu nunca consegui ser completamente lá fora. Lá fora eu nunca consegui ser bicha bichérrima na hora que eu quisesse, eu nunca consegui julgar e dar baile por ser julgado, e errar, e me arrepender, e chorar […] Se fosse para fazer um discurso de eliminação para mim, para saber que sou eu, era só usar a palavra intensidade”.

Gil do Vigor

No final de uma festa do Big Brother Brasil 21, o participante Gil do Vigor estava rodeado por vários companheiros no meio da pista de dança enquanto tocava “It’s raining men”. Quando uma parte apoteótica da música estava finalizando, Gil começou a retirar o cinto de sua calça. Camilla, outra participante, gritou: “Gil, não! Gil!”. Ele não titubeou: tirou a calça, levantou para o ar e a jogou no chão. No momento, todos em volta reagiram: Juliette se deitou no chão, Lumena se ajoelhou e fez várias reverências, João e Camilla começaram a correr de forma circular e extravagante ao redor da pista de dança.

O que me chama atenção nesse momento não é somente a empolgação clichê de se entregar à música sobre a chuva de homens, mas é o gesto cadenciado de Gil ao jogar a calça no exato momento em que a explosão da música terminava. É um gesto coreografado, ainda que essa coreografia seja instintiva, embriagada e torta. Mas ninguém pode dizer que Gil perdeu o ritmo, que ele não performou, que a sua mise-en-scène não funcionou. Ele explode com a música, e mesmo quando erra ou é desengonçado, seu gestual sempre carrega uma aura de estilo e glamour, uma luz tão forte que chega a despertar (para o bem e para o mal) as pessoas em sua volta.

BBB 21: Gil faz performance de Britney Spears e se declara a Juliette em  festa - 25/03/2021 - BBB21 - F5

Gil do Vigor. Imagem: Distribuição / Rede Globo

Devido à forma como seu corpo fala, Gil do Vigor surgiu para mim como a personificação cotidiana do Camp, uma sensibilidade que percebe o mundo como um teatro, ocasionando uma forma de viver diferente da norma padrão e transparente, como notamos no “Terceiro manifesto Camp” de Denilson Lopes: “A estetização da vida cotidiana implica uma revitalização lúdica da comunicação, da representação, artifício de sedução e liberação de uma identidade individual única. A aparência do vestuário faz do próprio corpo algo indeterminado, indefinido, fluido”.

Nesse sentido, considero que a potência da artificialidade de Gil do Vigor está não somente no conteúdo do que ele fala, mas na forma como ele fala, anda e vive. Os diálogos “profundos” podem ser repetidos por alguém com boa oratória, e no programa há várias pessoas viciadas em proferir discursos pretensamente emocionantes. Mas Gil vai além e consegue comunicar algo mais intenso a partir do seu próprio corpo, nas três palminhas que bate quando briga, na entrega sem medo de ser gay, de se jogar em todos, na voz desafinada que grita Braseeell e adora cantar, nos choros incontroláveis etc. Ou seja, a alma do Gil é uma alma estilizada.

E esse estilo está também na maneira como ele aceita, incorpora e louva a artificialidade do mundo e da sociedade onde está inserido. Gil não se abate diante da necessidade de interpretar algo em um jogo de máscaras. Ele se joga nesse jogo e consegue ser autêntico ao entender que na vida contemporânea é preciso performar, atuar, brilhar.

Ele está no Big Brother com um roteiro autoral, como se fosse um ator-diretor, um Orson Welles, na filmagem de um texto clássico que foi apropriado por ele mesmo. Apostar na dramaturgia falsa de que viveria ali dentro como se vive aqui fora é algo muito pequeno para o Gil. Ele não pode perder tempo algum. Há um PhD o esperando aqui fora, e lá dentro ele precisa tornar aquela experiência marcante. Quando ganhou uma prova do anjo, Gil gritou: “Eu fiz tudo, Fiuk! Eu fiz tudo, Thiago”. Ele comemorava não somente a vitória naquela prova, mas sim todas as suas conquistas nas dinâmicas até aquele momento. Inicialmente, parece a fala de um arrogante, um egóico já diria Lumena, mas se olharmos para a forma como ele gritava, é fácil identificar a humildade de sua megalomania.

Mas, como um ator com pouca experiência, Gil às vezes se perde no próprio roteiro, passa do ponto, cai nas próprios vícios de “personagem jogador” que ele começou a interpretar há pouco tempo. Nós, o público, somos impactados por essa voz estremecida, mas emocionada, típica de um ator iniciante que está longe da perfeição mas emociona muito mais do que os atores profissionais. Quase todos no Big Brother são participantes profissionais, Gil é o iniciante que hesita mas se entrega. Tentarei seguir essas transformações nesse texto, ainda que o meu principal objetivo não seja fazer grandes revelações, mas desenvolver uma escrita amorosa que carregue um sentido de intensidade em seu próprio desenrolar, quase como um testemunho sobre o que Gil pode causar, um texto impactado pelo seu impacto.

Gilberto, do BBB 21, é aprovado com bolsa em PhD em universidade da  Califórnia | NSC Total

Gil do Vigor. Imagem: Distribuição / Rede Globo

Quando sugeri esse texto para a editora do site, Sttela Vasco, eu era só empolgação e estava fascinado. A própria Sttela também se entusiasmou e super apoiou, e ainda disse que estava na espera de uma festa Britney para Gil. Mas aquela era a época do G3, quando Gil formou com as participantes Juliette e Sarah um trio que atacava diretamente o grupo dos vilões. Ou seja, maniqueísmo da melhor qualidade. No entanto, quando o gabinete do ódio saiu, o trio começou a se desfazer. Devido a paranóias próprias e de outros, Gil se virou contra Juliette, então principal alvo de ataques injustos da casa. Eu não conseguia mais olhar para o Gil porque suas falas eram ácidas, quase venenosas.

Quando chegou a sua esperada festa, que seria então um bom chamativo para o texto, eu não consegui acompanhar com muito afeto a cerimônia Rainbow. Não só porque Gil era um vilão, pois era de se esperar que os participantes se transformassem em vilões, mas porque eu não imaginava sentir raiva por uma figura que me fascinava. Era difícil escrever sobre uma desilusão. Olhava a festa, mas não escrevia o texto (desculpe Sttela).

No entanto, no meio da cerimônia colorida, começou a tocar La Belle de Jour de Alceu Valença. Juliette e Gil foram para o fundo, sozinhos, afastados dos outros. Gil então começa a chorar, Juliette o abraça e diz: “Deus sabe de tudo, Gil. Relaxa teu coração. Segue ele e pronto”. Gil responde: “Tu me aperreia, mulher, mas eu te amo”. Chorei. Eu comecei a olhar com outros olhos para o Gil. Ele foi se transformando, identificou os próprios erros e tentou se redimir.

Gil se declara para Juliette na festa do líder do BBB 21 - TNH1

Gil e Juliette. Imagem: Distribuição / Rede Globo

A minha paixão ganhou maturidade pois vi Gil em várias fases. Consequentemente, hoje percebo que ele se tornou mais rico devido às suas contradições. Mais do que o fã da cachorrada e de Britney Spears, observamos também momentos de perversidade, melancolia, solidão e até de harmonia, principalmente na atual “era da leveza” do programa. Isto é de uma riqueza ímpar, principalmente quando consideramos o questionamento lançado pelo pesquisador Ricardo Duarte Filho: “Onde andará a bicha melancólica? Estaria soterrada por uma profusão de discursos que exigem representações gays positivas dentro de uma lógica homonormativa?”.

Gil está longe de ser uma figura totalmente positiva. Ele perdeu o seu próprio favoritismo devido aos seus exageros nos momentos de ataque. Mas por que exagerar, e por que continuar exagerando ainda nos momentos de dor e solidão? Aqui uma definição de Ricardo Duarte pode nos ajudar novamente: “O queer melancólico seria aquele que recusaria a realidade do mundo que vive, o que pode demandar ações de criação para gerar uma outra realidade para si”.

Nessa linha, lembro que no momento de maior solidão de Gil, quando sua melhor amiga saiu e muitos o atacaram, ele não conseguiu ficar muito tempo em uma festa, voltou para o quarto e começou a chorar debaixo do edredom. No entanto, minutos depois, ele voltou para o meio da pista e dançou sozinho, enquanto soltava altos gritos agudos, a música TNT do AC/DC, algo bem distante de sua Britney. Não afirmo que Gil seja um queer melancólico, mas é a partir do exagero que ele consegue vencer os ataques dos medíocres e criar um mundo em que é aceito de forma plena, ainda que, às vezes, somente ele seja o habitante desse mundo.

Prestes a acabar o Big Brother, fico feliz por ter conhecido essas diferentes facetas do Gil do Vigor. A cachorrada não se tornou somente o momento de explosão no meio da festa, mas é uma entrega total à artificialidade da vida. De certa forma, ele está em conexão com um entendimento mais complexo sobre a sensibilidade Camp, distante de visões preconceituosas e limitantes, e mais próximo do final do “Terceiro manifesto Camp” de Denilson Lopes:

Hoje, o camp expressa não o desejo de afirmação do estereótipo envelhecido da bicha louca, mas o desejo de empreendermos todos, das mais diversas sexualidades e sensualidades, uma nova educação sentimental, não pela busca da autenticidade de sentimentos cultivados pelos românticos, mas pela via da teatralidade, quando, apesar da solidão, para além da dor maior da exclusão, da raiva e do ressentimento, possa ainda se falar em alegria, em felicidade. Faça uma pose. Eu faço. Agora”.

A alegria de Gil tem sinais de exclusão e raiva, pois o seu próprio desespero em se entregar é uma forma clara de viver e aproveitar o que lhe foi negado por muito tempo, desde a possibilidade de demonstrar livremente os seus afetos e a sua personalidade tresloucada, até o atendimento semanal a um psicólogo, algo que ele tanto valoriza. Ou seja, o roteiro do excesso que Gil “escreveu” não levou em conta somente o seu fanatismo pelo programa Big Brother, mas também as suas experiências (algumas dolorosas e outras prazerosas) que ele viveu enquanto assistia o programa. São essas questões que salvaram o programa. Aline Ramos, do Uol, definiu bem como Gil se tornou a alma do programa mesmo após as suas contradições:

Gil do Vigor não tem vocação para ser vilão, mocinho, planta ou estrategista porque carrega todos esses perfis dentro de si. Quando você acha que ele é uma coisa, ele te surpreende com outra. Gil é tão imprevisível e humano quanto eu e você. E é essa humanidade que torna Gil único”.

A relação dessa “construção” com o nosso contexto torna a figura de Gil mais necessária, como comentou o colunista Fefito, no podcast da Uol, logo após relembrar outros participantes gays:

Quando DiCesar e o Serginho entraram no BBB 10, a gente estava em um país cheio de esperança e otimismo. A mesma coisa com o Daniel do coqueiro, o Lucival e tantos outros LGBTS que passaram por lá. Agora a gente vive em um momento tão polarizado que ver alguém tão confortável na própria pele pela primeira vez na vida, e que está desabrochando em frente às câmeras, é muito lindo”.

Com a possibilidade desse clima se intensificar, precisamos de mais tempo com Gil do Vigor, porque ele encanta e inspira. Infelizmente é de se esperar que o comportamento vigorento desperte reações de punição em quem não aceita a sua personalidade (algo visto nos comentários homofóbicos de outros participantes do programa), mas a intensidade de Gil é tão expansiva que chega a amedrontar e encurralar os “bastiões” da norma padrão.

Gil do Vigor tem torcida de economistas para não rodar no paredão do BBB 21  | Jornal Expresso CE

Gil do Vigor. Imagem: Distribuição / Rede Globo

Eu sei que esse texto é permeado pelo entusiasmo quase juvenil que sentimos quando percebemos que algo é, simplesmente, maravilhoso. Eu não sei por quanto tempo essa chama vigorenta vai continuar queimando; ela pode apagar semana que vem, com o fim do BBB, ou virar tema de um doutorado de quatro anos. No entanto, em uma época tão sombria como a nossa, principalmente aqui no Brasil, é essencial e especial que alguém consiga despertar o desejo de utopia, e Gil é a realização da utopia do excesso, pois quem nunca sonhou em transformar a vida em algo digno a partir da via do exagero?

Quem nunca sonhou em cantar “Exagerado” como o Cazuza, ou seja, cantar aquelas palavras simples e não parecer cafona, mas autêntico? Quem nunca sonhou em ser lembrado assim como Carlinhos foi lembrado por Roberto Piva nos versos “vou incinerar teu coração de carne & de tuas cinzas vou fabricar a substância enlouquecida das cartas de amor”? Quem nunca sonhou em ser piegas, profundo e romântico como o Robbie Williams em “Sociedade dos poetas mortos”? Quem nunca sonhou em beijar assim como se beijam Anselmo Vasconcelos e Tonico Pereira em “República dos assassinos”? Gil do Vigor está na esfera desses “acontecimentos”. O seu beijo com Lucas é quase uma versão mais intensa do beijo de Anselmo e Tonico. Eu não preciso mais de Pedro Almodóvar.

Mas Gil também é uma outra coisa, pois ele não é um poema, uma biografia ou um filme, mas é essa pessoa distante e próxima que está no Big Brother. Ele se tornou uma contemporânea referência do excesso, distante dos sonhos românticos de outrora que se esvaziaram com o tempo. Ele é o exagerado que consegue dar poesia para danças caóticas ao som de Britney Spears, brigas, venenos e um reality show na Globo. Juliette, a favorita dos 20 e poucos milhões, pode até ganhar o Big Brother, mas Gil do Vigor ganhou meu coração.

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