Diferentemente de suas produções anteriores, A Doce Vida não tem uma cronologia exata. Não é um filme linear, senão episódico.

Somos apresentados à personagem vivida por Marcello Mastroianni, um jornalista frustrado cuja função se resume em caçar polêmicas por Roma, já que não consegue escrever seu sonhado livro. – Há quem diga que Marcello, personagem homônimo de Mastroianni, é uma projeção do próprio Fellini, que começou sua carreira no jornalismo muitos anos antes de virar cineasta.

Seria uma tarefa inesgotável analisar cada episódio de A Doce Vida separadamente. São muitas camadas e inúmeros símbolos colocados o tempo todo por Fellini, fazendo com que, mais uma vez, estejamos diante de uma obra de arte atemporal. Mas de modo geral, podemos dizer que esse é um filme que expõe um mundo que nós mesmos criamos.

A Doce Vida acontece numa Itália pós-guerra que estava começando a se reerguer econômica e socialmente, além de se tornar o polo cultural cinematográfico da Europa, graças aos investimentos recebidos de países amigos e às produções que atraíam artistas do mundo todo.

É nessa nova Itália de costumes espalhafatosos que surgem os novos símbolos do universo felliniano e que o diretor nos coloca mais uma vez para refletir: o que, verdadeiramente, vale a pena?

Num momento em que as diferenças sociais e os privilégios de pequena parte da população de nosso país ficam cada vez mais evidentes, é quase perturbador assistir às extravagâncias das celebridades fellinianas.

As festas, os desejos e atos mais esdrúxulos das atrizes retratadas quase nos fazem lembrar de socialites, DJs e influenciadores – que sem sombra de dúvidas entrariam na Fontana di Trevi em plena madrugada com a desculpa de que mereceram chegar até ali.  (Esta sequência é uma das mais famosas da história do cinema e levou quatro horas para ser gravada; foi feita numa madrugada só!).

Com as celebridades ganhando cada vez mais destaque no dia a dia mundano da Itália no fim dos anos 50, Fellini traz para a tela o retrato de uma mídia quase antropófaga que se aproveita da espetacularização de cada acontecimento para levar até às últimas consequências a busca por uma manchete.

É muito maluco pensar que quase 40 anos depois da estreia desse filme, depois de termos nos acostumado a consumir notícias da vida privada de famosos como se fossem nossos vizinhos, a princesa Diana morreu num acidente de carro enquanto fugia de paparazzi que tentavam fotografá-la a qualquer custo.

Aliás, o termo “paparazzi” surgiu e se popularizou exatamente por conta de A Doce Vida. Acontece que, na trama, um repórter amigo do personagem de Marcello chamava-se Paparazzo e vivia se enfiando em situações inusitadas para conseguir cliques exclusivos – e invasivos.

O que ressalto desse filme, além da presença de elementos já apresentados antes como as prostitutas, as praças, a religiosidade, as atuações pitorescas e o jogo que acontece dos personagens com a cidade, é a crítica ácida e bem-humorada de Fellini tanto à mídia quanto ao modo de vida luxuoso e vazio dos famosos da época.

É importante observar a maneira com a qual as pessoas se relacionam com aspectos da vida pública e privada. O quanto de sagrado e profano é colocado em cheque cada vez que entra um acontecimento novo na tela.

Isso pode ser visto desde o primeiro minuto de filme, quando uma estátua de Jesus Cristo passa pendurada num helicóptero a caminho do Vaticano e logo atrás, em outra aeronave, passam Marcello e Paparazzo prontos para o furo.

O incômodo cresce quando surgem as festas sem propósito algum. Aí percebemos as camadas de frustração e as lacunas de afeto que a personagem de Mastroianni carrega, em inúmeras tentativas de se voltar para dentro de si, mas sempre sendo puxado pelo mundo de fora. Ele faz parte do sistema, reconhece que é um lugar nocivo, mas não consegue sair dele.

Por muitos críticos, A Doce Vida é considerada uma das obras-primas de Federico Fellini, por absolutamente tudo o que representa. Assim como toda sua produção – especialmente os primeiros filmes rodados – não é um longa simples de ser assistido. Pede atenção nos mínimos detalhes que às vezes podem até passar despercebidos, mas que jamais foram colocados ali sem planejamento.

O quanto uma vida doce pode ser extremamente atraente, porém recheada de vazios impossíveis de serem preenchidos? É este o maior apontamento de Fellini em A Doce Vida, o que mais pra frente em 8 ½ tem outro desdobramento que coloca em cheque claramente sua função no mundo enquanto cineasta.

Um de seus filmes mais lembrados, A Doce Vida faz parte do catálogo do streaming do Telecine. Esse e outros longas do diretor estão disponíveis na plataforma que oferece os primeiros 30 dias de acesso gratuitos.

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