Por Mario Neto
A guerra, o conceito de combater e aniquilar semelhantes por motivos dos quais, quem o faz desconhece, o estímulo da iniquidade e hostilidade deliberada, o ódio desenvolvido como mecanismo de funcionamento de uma competição, em que vidas são compreendidas como peças insignificantes descartadas a esmo, o fenômeno que desperta nos seres humanos seus sentimentos mais bestiais, a impetuosidade, o egoísmo, a covardia e o medo.
Tendo essa concepção, o imortal cineasta Stanley Kubrick desenvolve seu quarto longa-metragem, que viria a se tornar seu primeiro grande sucesso: Glória Feita de Sangue (1957), baseado no livro homônimo de Humphrey Cobb. Situado na Primeira Guerra Mundial, o filme retrata a ação inescrupulosa do general francês Mireau (George MacReady), que estimulado por uma possível ascensão hierárquica indicada por seu superior, o ardiloso General Broulard (Adolphe Menjou), ordena uma investida completamente impraticável, contra um ponto estratégico extremamente bem guardado pelo exército alemão, o que denota um caráter suicida à missão. Ainda sim, o coronel Dax (Kirk Douglas) responsável pelo regimento incumbido da função, acata a determinação e lidera seus homens na ofensiva. Indubitavelmente seu pelotão fracassa, tendo diversas baixas além de soldados que não tiveram a oportunidade de ao menos saírem das trincheiras.
Profundamente furioso com a derrota, Mireau acusa o batalhão inteiro de covardia, tentando transferir assim a culpa da manobra vergonhosamente equivocada aos combatentes do front, exigindo a execução de 100 soldados como forma de exemplo para os demais. Entretanto, Dax se mostra perplexo com tal atitude, e tentando interver pela vida de seus homens consegue reduzir para 3 o número de punidos, ainda sim não satisfeito exige um julgamento na corte marcial, na qual o mesmo será o advogado de defesa de seus comandados.
A guerra, na trama, se apresenta apenas como um artifício contextualizador, um motivo designado para suplantar manifestações extremamente profundas e obscuras, é simplesmente a ambientação de conceitos. Glória Feita de Sangue, apesar de conter cenas esplêndidas de combate que nos fazem sentir dentro do conflito, transbordar verossimilhança em diversos quesitos como, táticas, know-how aplicado, atmosfera hostil e entre outros, não deve ser catalogado apenas como um filme de guerra.
Esta obra é um profundo estudo psicológico do comportamento humano em situações extremas, nas quais principalmente a ideia de covardia é desconstruída e revisitada. Um dos exemplos em que podemos perceber esse tipo de reflexão está no diálogo entre dois soldados na noite que antecedia a missão, sobre o medo da morte e sua pior maneira de acontecer, fosse por balas de metralhadoras ou pelas baionetas do inimigo, ambas são peças de metais que perfurarão seus corpos ceifando-lhes a vida, porém uma causará mais dor e sofrimento do que a outra, ou seja, o medo em discussão não é o da morte e sim o da dor, pois para aquele que teme por sua vida a maneira que irão lhe tira-la é indiferente.
Assim é questionada a definição de sentir medo ou simplesmente ser um covarde. E esse tipo de análise será recorrente em toda projeção, seja nos atos covardes de Mireau e Broulard em não demostrarem nenhum tipo de apreço pelos seus soldados ordenando-os numa missão de morte, seja no julgamento dos 3 infelizes, em que a covardia se manifesta pela falta de compaixão, ou até mesmo na figura do deplorável Roget (Wayne Morris I) que sintetiza toda covardia do homem nos momentos de combate, ponderação na escolha do soldado a ser executado e no momento da execução.
Dizer que o roteiro é simplesmente impecável, trabalhando os atos e os núcleos dramáticos de maneira primorosa e concisa, que a fotografia é impressionante enchendo nossos olhos com luzes demarcadas que se contrastam de modo elegante e charmoso, que os planos e movimentos de câmera são verdadeiras poesias visuais extremamente imersivas, e que as atuações, principalmente de Kirk Douglas e George MacReady nos deixam arrepiados com tamanha entrega é constatar apenas algo que já foi falado, escrito e discutido diversas vezes. Aqui o grande aspecto a ser realmente exaltado é o poder de contemplação que a obra nos exerce, a comoção que causa, a maneira como em apenas 88 minutos nos vemos completamente envolvidos e embasbacados com tudo aquilo que estamos presenciando, essa é de fato a característica primordial do filme.
Kubrick nunca gostou de críticas cinematográficas, ele defendia que o público que assistia seus filmes desprovido de uma bagagem conceitual e técnica, era capaz de captar de maneira bem mais positiva o teor de suas obras. Glória Feita de Sangue, como todos seus trabalhos, é cinema na sua forma mais sincera e universal. Tecer teses, elaborar conceitos e destrinchar composições são perspectivas extremamente interessantes a se explorar, mas jamais irão superar o fenômeno da explosão de sentimentos que temos ao assistirmos imagens projetadas na nossa frente, e nesse quesito Kubrick era mestre.
Veja o trailer: