Que fazer após Jogo de Cena (2007), um dos filmes mais importantes da cinematografia nacional, aclamado por Jean-Claude Bernadet como “uma explosão transformadora da magnitude que tiveram no passado filmes de Eisenstein ou Godard”? Coutinho topou com essa questão maciça durante o desenvolvimento de Moscou (2009). E a topada foi incômoda.

Se, como definiu Bernardet,  Jogo de Cena desestabilizou as noções de identificação entre subjetividade e corpos dos sujeitos falantes, pondo em xeque a própria concepção do gênero documental baseado em entrevistas, como ir além?

De fato, ao mesclar discursos entre personagens que supostamente os vivenciaram e atrizes que os representavam, se inaugurou uma nova fase (mais uma!) do cinema de Coutinho. Tendo a reinvenção como método, o cineasta havia retomado sua produção, esparsa desde Cabra marcado para morrer (1984), com Santo forte, em 1999. A este se seguiram Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e o Princípio (2005). A amarra que unia essa nova safra consistia numa ideia de filme em que o documentarista sai em busca de personagens anônimos, geralmente em locações restritas: uma favela, um morro, um edifício, um pequeno município do sertão nordestino ou uma rede de relações (caso de Peões). Busca-se, nas histórias pessoais, experiências de extraordinária força singular.

A mudança ensaiada por Jogo de Cena se propôs a inverter a lógica. Não mais o autor vai em busca de personagens, mas as pessoas vão encontrá-lo em um teatro. O novo espaço não é fortuito: a intenção é mesmo abraçar a teatralidade e, consequentemente, borrar as fronteiras entre vivência e atuação, experiência real e simulada.

Moscou é a tentativa de se manter no mesmo tablado. Nesse filme, Coutinho convida o renomado grupo teatral mineiro Galpão para ensaiar a peça As três irmãs, de Anton Tchekhov. Sem expectativa de estreia, pois a intenção é retratar o processo, o incompleto, o gesto inacabado. Tal qual os finais inconclusos das histórias do escritor russo, sobre quem Eduardo Coutinho dizia que “não foi feito para estrear”.

Para a empreitada, foi convidado o diretor Enrique Diaz, que passa a trabalhar o texto com os atores e promover atividades lúdicas a fim de encontrar a atmosfera de “As Três Irmãs”. Histórias e experiências dos atores são entrelaçadas com momentos do drama de Irina, Olga e Macha, a ponto de não sabermos de onde vem o quê.

Pelas tantas, quase todos os atores saem de quadro, exceto uma atriz que, sentada, se põe a chorar. Uma outra retorna e a consola com fragmentos da peça, como se vida fosse teatro, ou quem sabe o contrário, ou talvez ambos indissociavelmente. Em outra ocasião, uma das irmãs, Irina, solta um “não fala assim que eu tenho vontade de rir” enquanto contracena, ampliando a ambiguidade. Em um exercício proposto por Enrique, os atores deveriam confessar imagens pessoais de passado e futuro para que, em um momento seguinte, as experiências surgidas ali fossem trocadas, uns relatando a subjetividade de outros, em um jogo de cena como o filme anterior.

Apresentadas em breve apanhado, as interessantes situações podem iludir e fazer crer que sintetizam Moscou. Não é o caso. O longa parece não saber como resolver o impasse instaurado entre captar uma cadeia de criação e registrar o conflito vida/teatro. Os momentos realmente intrigantes são rarefeitos e o filme passa sem atingir outras camadas de conflitos, quase monocórdico. Pra piorar, é inevitável a sombra de Jogo de cena. Lembramos de situações de intensa vitalidade, como o malogro de Fernanda Torres, e nos damos conta de que Moscou fica aquém.

O próprio Coutinho, posteriormente, reconheceria que Moscou  “é um filme que deu errado”.  Ainda no processo de montagem, a pressão abatia o diretor como nunca antes: “Editamos um primeiro corte de quatro horas e meia e eu não sabia o que fazer. Um amigo viu o material e disse que o filme não existia. Então João Moreira Salles viu e disse: ‘existe’. Ele sugeriu que eu esquecesse a interação na peça, que esquecesse a ordem, e que selecionasse aqueles momentos em que emergia a questão da verdade frente à ficção; e assim conseguimos. Fiquei seis meses editando o filme. Foi a experiência mais dolorosa da minha vida”.

O amigo que viu o material e disse que daquela pedra não sairia leite foi, muito possivelmente, o cineasta Eduardo Escorel. Em um texto da revista Piauí intitulado “Coutinho não sabe o que fazer”, à época do lançamento do documentário, Escorel sentencia com argúcia: “Coutinho é o grande ausente de Moscou”.

Ao conceder a condução parcial dos acontecimentos do filme ao diretor teatral, o cineasta se transforma em mais um espectador quase sem interferência no processo. Podemos enxergar gesto como parte de um coerente percurso dos seus documentários. Com o passar do tempo, Coutinho foi mais eliminando que incorporando recursos. A trilha sonora foi embora a partir de Santo forte, junto com o preenchimento de cenas. Aos poucos, os cortes tornaram-se mais escassos e os closes raríssimos. Tudo isso a fim de deixar prevalecer a oralidade. Mas relegar a própria direção seria demais para um autor que se notabilizou por ser uma grande persona em seus filmes – ainda que fora de quadro. A falta das típicas perguntas à queima roupa e de seus redirecionamentos inesperados às conversas situa Moscou em um lugar vazio, como o cenário fechado de paredes pretas do filme.

“É um filme que deu errado, mas eu considero ao mesmo tempo que tem um mistério interessante”, é a frase completa dita por Coutinho. Com todas as restrições que podemos fazer hoje, e com todos os dissabores pelos quais o diretor deve ter passado para concluir – um filme que talvez teimasse pela inconclusão -, é notável que Moscou, ao mesmo tempo, esteja recheado de beleza, demonstrando uma preocupação estética incomum a outros filmes do documentarista. Para mim, a mais inesquecível é a cena da escuridão iluminada por fagulhas de fósforos, riscados e jogados ao léu por dois atores enquanto cantam

“Como vai você?

Eu preciso saber da sua vida

Peça a alguém pra me contar sobre o seu dia

Anoiteceu e eu preciso só saber…”

Assista ao trailer: