Por Verônica Petrelli
Com o final de Harry Potter e a Câmara Secreta, Chris Columbus decidiu abandonar o trabalho de diretor da saga potteriana para dedicar mais tempo aos projetos pessoais e à família. Columbus sempre foi uma pessoa cheia de energia e disposição, mas os dois filmes desgastaram-no de tal forma que ele preferiu acompanhar o terceiro longa apenas como produtor.
Para assumir o seu lugar em tamanha responsabilidade, a equipe de filmagens optou pelo mexicano Alfonso Cuarón. Quando recebeu o convite, Cuarón pensou em recusá-lo, a princípio, por ser um profissional das antigas, arredio a filmes com muitos efeitos especiais. Foi o seu amigo Guillermo del Toro quem o convenceu a aceitar a proposta. Após ler os três primeiros livros da saga em apenas uma semana, Cuarón se apaixonou pela densidade da história e se viu ávido por adaptá-la para as telas.
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban foi um marco enorme para a série cinematográfica, apresentando uma quebra significativa com a troca de diretor. Muitos elementos foram modificados e, apesar de menos fiel à obra literária, o filme mostrou-se mais maduro, inteligente e sombrio. Inúmeros elementos proporcionaram essa mudança chocante dos dois primeiros para o terceiro: já não temos Richard Harris como Dumbledore (que foi substituído por Michael Gambon), o terreno de Hogwarts foi totalmente modificado para atender às necessidades das filmagens (algumas tomadas foram realizadas na Escócia), houve a chegada de uma nova figurinista, Jany Temime, e os uniformes dos estudantes de Hogwarts foram totalmente repaginados… Isso sem contar a gama de novos personagens: Sirius Black (Gary Oldman), Remo Lupin (David Thewlis), Rabicho (Timothy Spall), Tia Guida (Pam Ferris) e Sibila Trelawney (Emma Thompson).
Por parte dos fãs, houve uma relação de amor e ódio com o novo filme e o novo diretor, que quebraram com o padrão adotado nos longas antecessores. Por mais que seja um filme inteligente, denso e cheio de sacadas (Cuarón tem a sutileza de mostrar Hermione aparecendo e desaparecendo das aulas com o vira-tempo levemente à mostra por baixo das vestes), foram muitas as cenas deletadas. Não somos apresentados a Cho Chang e Cedrico Diggory logo no terceiro ano, não nos explicam quem são os verdadeiros donos do Mapa do Maroto (Rabicho, Aluado, Almofadinhas e Pontas), não nos contam que Filch, na realidade, é um aborto, não nos mostram o esforço de Hermione em salvar Bicuço nos tribunais e, principalmente, a maravilhosa cena em que Harry conquista a Taça de Quadribol das casas é cortada. Uma decepção para os fãs. Pior ainda é notar que Prisioneiro de Azkaban perdeu toda a magia dos filmes anteriores: o trio principal cresceu e usa roupas de trouxas o tempo inteiro no decorrer do filme, desfazendo-se das vestes negras de Hogwarts.
O longa se inicia com a fuga de Harry da casa dos Dursley, logo após a transformação da Tia Guida em balão. Depois de sair por uma rua escura e encontrar Sinistro, o cachorro amaldiçoado, Harry chama acidentalmente o Nôitibus Andante. O veículo exibido no filme foi especialmente construído usando componentes de um autêntico ônibus Routemaster da London Transport. Como o Nôitibus Andante tem três andares, o departamento de efeitos especiais adicionou mais um andar ao ônibus e pintou-o de roxo. Esse veículo foi encaixado na estrutura de um ônibus comercial que tinha um motor potente o suficiente para puxar duas toneladas extras de chumbo adicional. O cenário para o interior do Nôitibus foi construído em estúdio sobre um suporte móvel que pudesse ser rodado e inclinado, imitando os movimentos irregulares do veículo bruxo. Nessa cena, a equipe utilizou uma das técnicas mais antigas do cinema para simular velocidade: a under-cranking. O Nôitibus Andante segue em velocidade um pouco mais acelerada, enquanto os carros à sua volta andam bem devagar. Já as icônicas cabeças falantes foram inventadas por Alfonso Cuarón e deram um ar engraçado para a situação. Essa criação foi invejada até pela própria J.K. Rowling, que gostaria de ter pensado nessa ideia fantástica ao escrever os livros.
Depois de se hospedar no Caldeirão Furado e encontrar seus amigos Rony e Hermione, Harry embarca no Expresso de Hogwarts e tem um horrível encontro com os dementadores. Essas criaturas assustadoras foram adaptadas para as telas de maneira perfeita e fidedigna, trazendo exatamente a sensação de desespero e medo que os fãs sentem ao ler os livros. Em uma tentativa de conceber os guardiões de Azkaban sem efeitos especiais, criou-se um boneco dementador que foi filmado em câmera lenta enquanto era manipulado dentro de um tanque de água. O filme foi, então, rodado de trás para a frente com o intuito de dar às criaturas um sentido sobrenatural de movimento. Apesar de não ter sido utilizada no longa, essa tática serviu como molde para a equipe de efeitos especiais criar os dementadores por meio de computação gráfica. O resultado foi surpreendente.
É interessante notar como Alfonso Cuarón introduziu relógios estrategicamente localizados em Hogwarts, que são extremamente importantes para passar a mensagem subliminar de uma Hermione que volta no tempo ao longo de toda a sua jornada na escola. Outro ponto relevante é o Salgueiro Lutador, que foi escolhido para marcar as passagens das estações do ano. No decorrer do filme, a árvore se mostrará um elemento crucial, levando o trio principal ao encontro de Sirius Black.
Logo após o grande banquete de boas vindas no Salão Principal, Harry, Rony e Hermione têm o desprazer de conhecer a estranha professora de Adivinhação, Sibila Trelawney, interpretada por Emma Thompson. Logo que conseguiu o papel, a atriz enviou uma carta para o diretor Alfonso Cuarón com várias ideias para a sua personagem, mostrando-se imensamente interessada em contribuir com o visual de Trelawney. Por ter lido os livros de J.K. Rowling, Emma estava com a concepção da personagem formada em sua cabeça: óculos enormes, roupas démodé, cabelo desgrenhado, olhos focados sempre no além, não enxergando o que está a sua frente. Thompson contribuiu lindamente para o seu papel e serviu de exemplo até para a atriz Emma Watson, que sempre a admirou.
Além da aula de Adivinhação, outra nova disciplina que merece destaque no terceiro ano em Hogwarts é Trato das Criaturas Mágicas, com o novo professor Rúbeo Hagrid. Nessa ocasião somos apresentados ao pomposo hipogrifo Bicuço, e é aí que uma das cenas mais bonitas de todo o filme acontece: o voo do hipogrifo, com Harry montado no seu dorso. A combinação de lindas paisagens bucólicas com a maravilhosa música composta por John Williams ao fundo (a trilha sonora foi indicada ao Oscar e ao Grammy Awards) traz uma paz imensa, uma inenarrável sensação de êxtase e deslumbramento para quem assiste. A concepção de Bicuço foi um dos maiores desafios para a equipe de efeitos especiais. Afinal, se a criatura tem a parte traseira de um cavalo e as pernas dianteiras de um pássaro, como se movimenta, corre e voa? Qual largura devem ter as asas para carregar o peso de um equino? Para isso, os produtores construíram uma série de maquetes e modelos em escalas diferentes e, depois, criaram um Bicuço animatrônico em tamanho real, com um lindo conjunto de penas, que serviu de molde para a equipe de computação gráfica.
A próxima aula pela qual o trio passa é a de Defesa Contra as Artes das Trevas, com o novo professor, Remo Lupin. Nesse momento, os alunos aprendem a espantar um bicho papão com o feitiço Riddikulus, em uma cena extremamente fiel ao livro. É curioso pensar que o ator que interpreta Lupin, David Thewlis, já havia tentado disputar um papel em Harry Potter antes: o de Professor Quirrell, antecessor de Lupin na matéria de Defesa Contra as Artes das Trevas. David Thewlis é um grande fã dos livros e estava sempre recorrendo às obras para entender ainda mais o âmago de seu personagem que, ao longo da história, cria uma linda relação de companheirismo com Harry Potter.
Prisioneiro de Azkaban é repleto de momentos sombrios: a pesada porta cheia de trancas que é fechada logo que Sirius Black invade o castelo, a eletrizante partida de quadribol que recebe a inesperada visita dos horríveis dementadores, a descoberta de Pedro Pettigrew no Mapa do Maroto, no meio da noite, e a premonição da professora Trelawney são alguns dos elementos que confirmam o ar de amadurecimento que a série ganhou com o terceiro longa.
Assim que Harry descobre o Mapa do Maroto por meio dos gêmeos Weasley, o jovem bruxo tem a oportunidade de conhecer o vilarejo de Hogsmeade sob a capa da invisibilidade. Nas tomadas panorâmicas do povoado, são utilizadas maquetes físicas ou digitais construídas em escala. Todas as construções, iluminadas por lâmpadas minúsculas, foram replicadas até com pequeninos produtos nas vitrines. A perfeição da maquete foi tão grande que a direção de arte fez até pequeninas pegadas em escala na neve, saindo de uma das portas e subindo a rua. Para dar esse efeito de neve, foi aplicado um produto chamado sal dendrítico, colocado por meio de uma peneira, como se fosse açúcar de confeiteiro em um bolo. O sal era aplicado por assistentes de produção em cima de guindastes enormes, levando cerca de uma semana para ser derramado em uma maquete de escala 1/24.
Algumas das cenas mais divertidas do filme envolvem Draco Malfoy: a brincadeira que Harry prega no vilão loiro e seus comparsas em frente à Casa dos Gritos, embaixo de sua capa da invisibilidade, é simplesmente impagável. Destaque também para a incrível cena em que Hermione dá um soco em Malfoy, antes da execução de Bicuço. São momentos de descontração necessários em meio ao cenário conturbado e pesado do longa.
Após aquilo que julgamos ser a execução de Bicuço, Rony é capturado e levado para dentro do Salgueiro Lutador, desembocando na Casa dos Gritos. Nesse momento conhecemos o terrível marginal Sirius Black, um duplo personagem, interpretado brilhantemente por Gary Oldman (ator que Daniel Radcliffe sempre admirou). Oldman soube trazer para as telas o lado negro e ao mesmo tempo carinhoso de Sirius Black, um padrinho querido que sempre foi tratado como assassino por todos. O mais interessante nessa cena é notar como Snape, Lupin e Sirius discutem entre si como se fossem os mesmos adolescentes de anos atrás. “Por que você não vai brincar com o seu kit de Química?”, Sirius alfineta Snape. Uma cena cômica e recheada de suspense, após a reviravolta envolvendo Perebas e Pedro Pettigrew.
Um momento desesperador é, sem dúvida, a transformação de Remo Lupin em lobisomem, com a lua cheia ao fundo e os batimentos cardíacos acelerados indicando a metamorfose. David Thewlis permaneceu durante horas na cadeira de maquiagem para se tornar um lobisomem, além de ter recebido aulas de linguagem corporal com um coreógrafo no momento da encenação. Depois a sua maquiagem protética foi transferida para um boneco animatrônico de 2,7 metros, operado por um artista que caminhava em pernas de pau. Na fase final, o lobisomem foi inteiramente animado por computador. Foram necessários de 4 a 5 dias para filmar a cena completa. O curioso é notar que, diferente de clássicos como Um Lobisomem Americano em Londres (onde a criatura é forte, possui garras e é cheia de pelos), o lobisomem de Harry Potter é fraco, magricelo e sem pelos, algo totalmente proposital. A intenção era demonstrar que Remo Lupin era um tio muito bacana para Harry, mas que possuía uma doença incurável e terrível. O lobisomem, portanto, tinha que repassar esse aspecto doentio também.
Depois de passarem por todas essas aventuras, Harry e Hermione têm que voltar no tempo para salvar Bicuço e Sirius Black. A cena em que os dois jovens estão na enfermaria, rodando o vira-tempo, com todos os outros personagens do passado andando em volta deles em forma de borrões, é simplesmente fantástica e muito bem concebida. O próprio vira-tempo é uma das invenções mais sensacionais da saga cinematográfica. A artista Miraphora Mina, que criou o objeto, iniciou o seu trabalho observando astrolábios e instrumentos astrológicos. Acabou inventando uma forma que é um anel dentro de outro, com ditados sobre o tempo gravados no anel externo. A corrente possuía fecho duplo e podia ser desfeita e ampliada para caber em volta dos pescoços de Hermione e Harry.
A sequência de tomadas em que a dupla volta no tempo é muito bem arquitetada e construída, possuindo um ritmo frenético e eletrizante com o “tic tac” do relógio ao fundo. Depois das cenas aceleradas, temos um momento de calmaria com o lindo diálogo entre Harry e seu padrinho: “Aqueles que nos amam nunca nos deixam de verdade. E você pode sempre encontra-los dentro do seu coração”. Ao dizer isso, Sirius vai embora montado no Bicuço e se perde no escuro céu da noite.
Enfim, muito se perdeu em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, com cenas deletadas e mudanças significativas na trama. No entanto, apesar dos pesares, esse é um filme extremamente maduro comparado aos seus antecessores, muito mais complexo e denso, com efeitos especiais impressionantes. A escolha do foco narrativo mais sombrio também se mostrou crucial para os filmes posteriores, principalmente Cálice de Fogo, quando Lorde Voldemort ressurge em meio ao cemitério. Prisioneiro de Azkaban é, com certeza, a porta de entrada para toda a perplexidade inerente ao mundo bruxo. Alfonso Cuarón quebrou paradigmas, impôs o seu estilo e, apesar de tudo, merece os parabéns pelo trabalho realizado.
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban foi lançado nos cinemas em junho de 2004. Recebeu duas indicações ao Oscar (Melhores Efeitos Especiais e Melhor Trilha Sonora) e quatro indicações ao BAFTA (Melhor Filme Britânico, Melhor Maquiagem, Melhores Efeitos Especiais e Melhor Desenho de Produção).