Por Frederico Cabala
Nos primeiros segundos, tudo o que vemos é uma grade decorada em Art Noveau. Há abertura no zoom da câmera e percebemos que tal objeto metálico faz parte do sistema de ventilação de metrô, em cuja estação entram e saem pessoas aglomeradas num universo impessoal. Indivíduos trajando sobretudos, chapéus, boinas e cachecóis estão em sua maioria sozinhos e mal olham para os lados ao caminhar por calçadas e atravessar ruas cheias de automóveis de uma grande cidade à noite. Esse é o cenário de Nova York dos anos 1950. Nessa época, metrópole marcada pelo desenvolvimento urbano e por conter a maior população do mundo, quase 10 milhões.
Da multidão, somos levados à mesa de um calmo restaurante onde duas mulheres se encontram e mantém uma conversa que parece ao mesmo tempo íntima e tensa. A partir de então, a narrativa em longo flashback apresenta os porquês de tal clima de proximidade e apreensão entre elas.
Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara) estão em semelhante situação de insatisfação nos seus relacionamentos. A primeira vive um casamento com Harge (Kyle Chandler) que caminha para o fim, enquanto Therese foge de qualquer perspectiva de futuro sério no seu namoro com Richard (Jake Lacy). Embora de idades e classes sociais diferentes, um repentino interesse mútuo surge entre ambas quando Carol compra o presente de natal para a filha na loja em que Therese trabalha como vendedora. E então o título do filme passa a ter significado mais amplo, conotando também o sentido do período natalino, quando milagres e surpresas acontecem.
Após se conhecerem, as personagens passam por uma aproximação que, embora narrada por acontecimentos que se sucedem vagarosamente, é marcada por um ritmo emocional de tirar o fôlego. Os encontros em lanchonetes e os passeios de carro parecem triviais para qualquer outro casal, mas são muito significativos no jogo de atração, no flerte e na tensão erótica estabelecida entre Carol e Therese.
Aqui se torna relevante o espaço de modernidade já encontrado em Nova York dos anos 1950. O mundo de gente que as rodeia também as esconde. Em meio a tantos indivíduos, as personagens ficam anônimas e prosseguem se conhecendo. Será que em qualquer outro lugar do mundo isso seria possível? Fora da metrópole conseguiriam as duas mulheres driblar os olhares, comentários e julgamentos alheios de uma sociedade naquele tempo ainda mais conservadora que a que temos hoje?
Assim, diluídas pela multidão e cada vez mais apegadas, é possível perceber as transformações advindas dessa relação. Carol afasta-se definitivamente de seu casamento e passa a ter uma outra vivacidade, enquanto Therese investe cada vez mais na carreira de fotógrafa. Ela, que antes só clicava paisagens e pássaros, vê que também o mundo das pessoas é atraente para as lentes.
A reação da sociedade, entretanto, não demora a aparecer. Quando Carol e Therese finalmente podem manifestar o que sentem, um processo judicial instaurado pelo ex-marido da personagem mais velha ameaça a convivência entre ela e sua filha. A idealização romântica de uma vida a duas é abalada e é necessário lutar para não se abrir mão de conquistas importantes.
A estética do longa sempre corre na direção dos sentimentos das personagens. Todo processo de formação do casal e de autoconhecimento das mulheres é acompanhado pela simbologia de imagens em espelhos e vidros, que se somam e se contrastam aos próprios reflexos da iluminação da cidade.
A escolha de cores escuras, como tons de vermelho e mostarda, assim como a opção pela película em 16 mm fornecem um aspecto granulado que aproxima o filme a uma textura dos quadros de Edward Hopper. O pintor nova-iorquino retratou em grande parte de seus trabalhos o confronto entre a solidão silenciosa do indivíduo e o mundo de movimento da metrópole. É possível vislumbrar Carol, por exemplo, nas mulheres retratadas em obras como Automat e New York Movie (Ver na galeria abaixo).
Portanto, a dobradinha entre o diretor Todd Haynes e o fotógrafo Edward Lachman funciona em total sintonia. Algo que já havia ocorrido quando eles trabalharam juntos em Longe do Paraíso (2002), filme visualmente bastante similar a Carol.
O que impressiona mais ainda são os trabalhos de atuação que fazem Cate Blanchett e Rooney Mara. A primeira, em uma personagem segura de si e conquistadora que não precisa dizer muito para expressar o que pretende. Cate consegue transmitir as emoções de Carol com um só preciso olhar. Rooney se destaca ao conferir a maturidade e firmeza em um personagem que, apesar da pouca idade, é bastante equilibrado e paciente.
Não à toa, os aspectos de direção cinematográfica e as atuações foram indicados em suas categorias à premiação do Oscar deste ano. Na minha opinião, surpreende que Carol também não tenha sido incluído na lista de melhor filme, pois possui força narrativa que une riqueza estética e excelentes atuações para formar um discurso altamente necessário ainda hoje.
Carol
Ano: 2015
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Phyllis Nagy, baseado na obra de Patricia Highsmith
Elenco Principal: Cate Blanchett, Rooney Mara, Sarah Paulson, Kyle Chandler e Jake Lacy
Gênero: Drama
País: EUA
Trailer:
Galeria de Fotos:
- Carol
- Carol
- Carol
- Carol
- Carol
- Automat (1927) – Edward Hopper
- New York Movie (1939) – Edward Hopper