Por Sttela Vasco
Ainda pouco conhecido dentro de seu próprio país, Pequeno Segredo, dirigido por David Schürmann, chegou aos ouvidos do público primeiro por meio das polêmicas no qual se viu envolto antes de sua história. Considerado como o algoz de Aquarius na disputa pela indicação brasileira à vaga para Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2017 , o longa derrotou a obra de Kleber Mendonça Filho e acabou por ficar sob a sombra de seu até então anonimato e do título de ”aquele que foi no lugar de Aquarius”.
Com a estreia oficial prevista apenas para 10 de novembro – Pequeno Segredo terá uma sessão no Rio Grande do Sul a partir de 22 de setembro para se adequar às exigências do Oscar envolvendo a estreia – se questionou muito se o filme era digno do posto e se equivalia ao seu concorrente direto naquele momento. Não há, porém, como estabelecer um paralelo entre as obras. Não fosse seu país de origem e a disputa pelo Oscar, os caminhos de ambos dificilmente se cruzariam. Trata-se de olhares, temáticas e mensagens diferentes. O eleito pode não ter a força ou repercussão de Aquarius, talvez nem seja seu ideal. Porém, possui beleza própria e muita delicadeza para narrar uma história que tinha tudo para se transformar em um melodrama.
A família Schürmann é conhecida como a primeira família brasileira a dar a volta ao mundo em um veleiro. Tal façanha e as histórias envolvendo a vida no mar foram bastante difundidas entre o público principalmente nos final dos anos 90 e começo dos anos 2000. Porém, a história da adoção de Kat (Mariana Goulart), que faleceu em 2006 aos 14 anos por complicações do HIV, era mantida longe das câmeras. Heloísa e Vilfredo Schürmann (Júlia Lemmertz e Marcello Antony) viram sua história se entrelaçar com a de outra família após um encontro na Nova Zelândia com um casal prestes a ter sua primeira filha. Por uma série de acasos do destino, Kat acaba indo viver com os Schürmann e trazendo novos aprendizados à família de aventureiros.
O longa, que usa três núcleos e vai, a partir deles, construindo sua narrativa, não começa tão bem. A princípio, enquanto desenvolve suas três pontas, o roteiro parece um pouco travado, com cenas de ar quase novelístico. Porém, ele vai ganhando força conforme costura passado e presente e, pouco a pouco, pauta sua trajetória. As atuações também crescem no desenrolar da trama. A química, principalmente entre Maria Flor e Erroll Shand, que interpretam Jeanne e Robert, os pais biológicos de Kat, é fraca de início, mas o casal evolui conforme as dificuldades surgem nos caminhos de seus personagens. Lemmertz vai bem e cativa como Heloísa. Não se pode dizer o mesmo de Antony, que passa quase batido.
Schürmann soube bem usar sua experiência como documentarista – ele foi responsável por registrar uma série de viagens de sua família para a TV aberta e, posteriormente, transformou o material em documentário – o que resulta em externas de beleza impressionante, com o foco, como é de se esperar, no oceano. A fotografia do longa também segue com a mesma qualidade. A música, apesar de combinar com diversos momentos do longa, se mostra um tanto incômoda e deslocada em outros, o que acaba por prejudicar a qualidade de algumas cenas.
Apesar da carga dramática, Pequeno Segredo não carrega a mão no drama. Isso vai evoluindo naturalmente conforme as narrativas se entrelaçam. O HIV, apesar da importância na história e no desenrolar da mesma, também não é o foco. Assim como as críticas que faz, o tema é pincelado de maneira sutil. Está presente, mas não atrai atenção para si. Os preconceitos envolvendo os portadores do vírus e as dificuldades de tratar a doença nos anos 90 também estão lá, mas como pano de fundo.
É fácil perceber que o centro de tudo é, na verdade, as relações humanas, especialmente as entre mães e seus filhos. Temos três mães de mundos e jeitos totalmente diferentes. Jeanne, simples, com ar sonhador e que vê na filha a chance de aplacar a solidão na qual se sente inserida em seu novo país. Heloísa, a ”mãezona”, atenta, presente e preocupada e Barbara – um dos destaques, interpretada pela veterana Fionulla Flanagan e retratada de maneira um tanto caricata em alguns momentos – uma mãe rigorosa, conservadora, controladora e cheia de preconceitos. É graças a ela, aliás, que ocorrem os momentos de maior crítica e também maior comicidade do filme.
Barbara reflete bem a visão estereotipada e preconceituosa com que o Brasil foi e ainda é retratado aos olhos de quem o vê de fora e, por vezes, dos próprios brasileiros. Ela é contra o casamento do filho com uma brasileira, exulta o fato da neta ser loura e mais parecida ”com nós do que com eles” e é mais acolhedora com os Schurmann, família branca, com inglês fluente, mas que não escapa de ser acusada de fazer “drama latino” em certas ocasiões. A presença do inglês, aliás, faz sentido na obra, afinal, o pai de Kat é da Nova Zelândia e é pra lá que ele decide viver com sua família. A maneira como ele surge, no entanto, parece deslocada e até um tanto artificial em alguns momentos.
Há muita ”poeticidade” na maneira de David contar tal história. A cena em que Maria Flor encontra no oceano a jovem Mariana, que vai bem com sua Kat serena e discreta, é uma das mais belas de todo o filme. Há um encontro metafórico entre a mãe, que está percebendo algo de errado em seu corpo, e filha, que acaba de descobrir a verdade sobre sua doença. São em momentos assim, subjetivos, que o longa atinge seu ápice e consegue envolver o espectador. Em silêncio, no oceano, é como se transmitisse mais mensagens do que durante seus diálogos. Por mais resistente que se seja, é difícil se manter impassível diante da história de Kat, suas interações e vivências. Pequeno Segredo é simples e ganha justamente com sua simplicidade. É uma história sobre encontros, família, amor com preconceitos e temas como o bullying pontuados aqui e acolá.
Não entrarei no mérito de merecimento. Aquarius possui um viés crítico que Pequeno Segredo não percorre e que não é seu objetivo. Cada um cumpre o papel que se propõe e são exemplos dos vários cinemas brasileiros que existem dentro do Brasil. É interessante, no entanto, em meio a todo o caos perceber que ambas as obras têm sua força no feminino. São mulheres que conduzem tais narrativas, são delas as batalhas travadas e, contrariando o que normalmente se vê na representação feminina dentro da indústria cinematográfica, são personagens fortes, decididas e que lutam sem fraquejar. Política e polêmicas à parte, o filme merece mais do que ser apenas ”aquele que foi no lugar de Aquarius“. Aquém de qualquer comparação, Pequeno Segredo possui uma história que merece ser conhecida e assistida.
Ano: 2016
Direção: David Schürmann
Elenco:Júlia Lemmertz, Marcello Antony, Maria Flor
Gênero: Drama, Biografia
Nacionalidade: Brasil
Assista ao trailer: