Por Felipe Teixeira
Vencedor da Palma de Ouro, agridoce Eu, Daniel Blake emociona com história revoltante
Eu, Daniel Blake é uma produção britânico-franco-belga com a qual o público certamente se identificará por contar com um antagonista que também faz parte da vida de milhões de cidadãos: a máquina da burocracia. A trama do filme gira em torno de um solitário homem de 59 anos que, após sofrer um ataque cardíaco, precisa desesperadamente conseguir um auxílio financeiro do governo para continuar se sustentando já que não pode voltar a trabalhar. Em uma de suas incontáveis visitas a um banco, o homem, chamado Daniel Blake, conhece a pobre mãe solteira Katie (Hayley Squires, ótima), que se mudou recentemente e passa por dificuldades semelhantes. A problemática situação em que ambos se conhecem acaba gerando uma inesperada amizade que precisa superar as adversidades financeiras.
Víuvo, Daniel Blake é interpretado com uma naturalidade impressionante pelo pouco conhecido Dave Johns. É interessante notar, por exemplo, como os olhos do ator são fundamentais para descobrir o que o personagem está sentindo, como na cena em que ele é avaliado por uma médica, revelando uma contida felicidade por alguém estar cuidando dele, e em outra quando ele olha para a filha de Katie falando no telefone com uma parente e também esboça um leve e saudoso sorriso. Quase sempre utilizando as mesmas roupas, o humilde personagem comove pela sua determinação em não desistir mesmo diante de inacreditáveis empecilhos do sistema, e diverte ao tentar se adaptar de forma bem humorada a um novo mundo de formulários online, CVs e selfies. E o plano em que Blake encontra-se parado diante de uma exuberante joalheria, bem ao lado de um pôster de uma modelo, após mais uma malsucedida tentativa de ajuda do banco, escancara o frustrante isolamento do personagem em níveis sociais, econômicos e tecnológicos.
Sem cair na armadilha de forçar emoções fáceis por meio da relação entre o experiente Daniel Blake e as carismáticas crianças do filme, o roteiro de Paul Laverty é eficiente em desenvolver sem pressa a história sobre o passado de protagonista, visto que apenas descobrimos sobre o que houve com sua família já com bastante tempo de filme. Da mesma forma, é interessante reparar em como o texto de Laverty e a atuação de Johns evitam ao máximo que o personagem perca o controle emocional mesmo passando por tantos problemas e dificuldades desnecessárias geradas pelo governo, e quando Daniel Blake, enfim, externa sua angústia após descobrir um triste acontecimento envolvendo Katie, a cena torna-se muito mais triste por estarmos vendo um aparente descontrole pela primeira vez.
Sem usar qualquer tipo de trilha sonora para guiar as emoções do espectador (ouve-se apenas toques de telefone, barulhos de carros, conversas entre transeuntes), o diretor Ken Loach também não tenta tornar o filme melodramático e posiciona a câmera quase sempre longe dos eventos, utilizando poucos closes, como em um olhar subjetivo de alguém que também estivesse vivenciando os acontecimentos. E este alguém, certamente, poderia ser representado pelos que irão assistir ao filme, visto que ele funciona como uma dura crítica de como o governo, comandado por executivos engravatados atrás de mesas e formulários, pode arruinar a vida de quem não se encaixar como o mercado exige. Em tempos de polarizantes eleições e cada vez mais descrença nas figuras políticas, Eu, Daniel Blake é um sensível longe-metragem que pode aumentar ainda mais a angústia das pessoas diante do sistema.
Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake)
Ano: 2016
Direção: Ken Loach
Elenco: Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy
Gênero: Drama
Nacionalidade: Reino Unido, França, Bélgica
Assista ao trailer: