Por Sttela Vasco
Tenha você sido crianças durante os anos 1980 ou não, o palhaço Bozo com certeza não lhe é um estranho. Importado dos Estados Unidos, país aonde já era líder de audiência há dez anos, o programa foi exibido pelo SBT durante os anos 1980 e 1991, conseguindo tanto sucesso quanto o original. Interpretado por diversos atores, o personagem rendeu inúmeras histórias que, apimentadas pelo caótico e pouco politicamente correto cenário da televisão brasileira então, tornaram-se dignas da sétima arte. E é justamente isso que Bingo – O Rei das Manhãs faz: uma coletânea de casos vivenciados pelo palhaço pautada na vida de Arlindo Barreto, segundo intérprete da figura no Brasil e embalada na loucura que foi a telinha nos anos 80. Dirigido pelo estreante na direção, Daniel Rezende – montador de Cidade de Deus, pelo qual foi indicado ao Oscar, Tropa de Elite 2 e Diários de Motocicleta – Bingo é uma viagem no tempo com direito cenários coloridos, humor duvidoso, cenas de sexo e os bastidores da televisão.
O longa conta a história de Augusto (Vladimir Brichta), um ator de pornochanchadas, filho de uma grande diva (Ana Lucia Torre), que tem como objetivo crescer na carreira e ser um marco na televisão brasileira. Ele acaba por conquistar o papel do palhaço Bingo e, a partir daí, precisa lidar com os prazeres de ser a maior atração da TV e, ao mesmo tempo, ser anônimo, além de suas relações familiares e seu envolvimento com drogas.
Se o nome do palhaço que intitula o filme é pouco familiar ao público, – por não deter os direitos autorais para o uso do nome Bozo, a produção precisou trocar o nome do personagem -, todo o restante é mais do que fiel à década que retrata. Desde a trilha sonora, que conta com músicas como Serão Extra, do Dr. Silvana e Cia (o nome pode até ser estranho, mas o refrão você conhece, vai por mim) até o figurino, os carros e a própria televisão – e suas piadas.
É certo que, tratando-se de um programa exibido nos anos 80, é impossível esperar que o humor se mantivesse no que é considerado politicamente correto atualmente. No entanto, o longa apoia-se excessivamente em comentários machistas e piadas sobre evangélicos – especialmente sobre mulheres evangélicas – o que, aos poucos, torna-se cansativo e de mau gosto. A “licença poética” é válida dada às circunstâncias, mas por vezes o humor do filme parece depender exclusivamente disso. Curiosamente, a redenção aos insultos religiosos vem ao mostrar que o desbocado Bingo encontrou seu palco em cultos evangélicos, algo exigido por Barreto, que demandou que 25% da história retratasse a sua volta por cima em troca da cessão dos direitos de sua imagem à produção.
Mais do que a história do Bozo, Bingo trata também da história da televisão brasileira, ou ao menos um capítulo dela. Com internas gravadas no Estúdio C da TV Cultura, o espectador consegue acompanhar o tempo todo os bastidores de um estúdio e da produção de um programa ao vivo desde antes mesmo de sua ida ao ar. Interessante também é o panorama, ainda que breve, que o longa faz a respeito das pornochanchadas.
Originalmente escrito para Wagner Moura, o papel do palhaço que sofre por ser um “ilustre anônimo” vai bem nas mãos de Vladimir Brichta, que dá ares de galã à figura. Já conhecido por alguns papeis cômicos, o ator cumpre bem a função de fazer de Bingo – ou Augusto Mendes – um personagem multifacetado. Como toda boa biografia, acompanhamos como Mendes vai de um aspirante à protagonista de novela ao palhaço mais famoso do mundo e sua inevitável queda. Malandro, piadista, mulherengo, mas ao mesmo tempo apegado à mãe e ao filho e preocupado em “deixar sua marca no mundo”, o que acaba sendo justamente o fio condutor de toda a trama. Como deixar tal marca quando ninguém sabe quem você é? Qual a graça de ser o maior sucesso da televisão quando, na verdade, o adorado é um personagem e não a pessoa por trás da maquiagem?
Pouco a pouco, Augusto vai se perdendo entre a vida festiva e cheia de luxo que Bingo lhe proporciona e uma crise de identidade ao perceber que nunca poderá realmente colher os frutos da fama. O Rei das Manhãs questiona algo já retratado magistralmente por Charles Chaplin em Luzes da Ribalta: a brevidade da vida artística e o fato de que um palhaço não é nada sem seu picadeiro e um artista não existe sem holofote. Essa última é mais explorada – de maneira um tanto excessivamente dramática – por meio da mãe de Bingo, a ex diva e rainha da televisão e do teatro Marta Mendes, do que por ele em si. O núcleo familiar de Augusto, inclusive, é o que carrega a carga dramática do longa. Sua relação com o filho, Gabriel, é chave para momentos cruciais tanto na vida do personagem quanto para o filme em si. Aliás, é justamente essa relação e seus conflitos é o que humaniza o personagem e evita que a história seja apenas um “como o homem por trás do palhaço viveu loucamente”.
Porém, se a química familiar funciona, não se pode dizer o mesmo de outras atuações. No papel de ex de Augusto e mãe de Gabriel, Tainá Müller aparece apática e desajustada. Pedro Bial, por sua vez, na função de um magnata da Mundial – trocadilho do longa para representar a TV Globo – não faz nada mais do que ser ele mesmo, engessado e pouco expressivo. Até mesmo a Gretchen de Emanuelle Araújo não convence. Apesar da beleza e simpatia da atriz, a personagem acaba parecendo uma caricatura mal feita da “rainha do rebolado”, sugerindo que sua presença é apenas para trazer alguém realmente conhecido pelo público, uma vez que nomes e marcas foram trocados por conta de direitos autorais. Vale citar, porém, a participação de Domingos Montagner. Palhaço na vida real, o ator, morto em setembro de 2016, fazia parte da Cia. La Mínima e no longa serve como mentor de Augusto. Inclusive, foi seu parceiro, Fernando Sampaio que ajudou Brichta em sua preparação para o papel.
Colorido e cheio de energia, O Rei das Manhãs comete o erro de se perder em sua própria história em alguns momentos e pesar a mão no drama chegando a níveis quase novelísticos. O roteiro, assinado por Luís Bolognesi, em determinados pontos parece querer falar sobre um pouco de tudo e faz algumas viradas um tanto abruptas. Algumas transições também incomodam, parecendo quase sem sentido. Porém, não é possível negar que se trata de uma boa produção e uma boa cinebiografia, com tudo que o gênero tem direito. Passando por altos e baixos, assim como o personagem que lhe dá nome, Bingo começa bem, derrapa no meio do caminho, mas consegue se reencontrar no final e fazer jus ao seu holofote.
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luis Bolognesi
Elenco: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Augusto Madeira
Gênero: Biografia, Drama
Nacionalidade: Brasil