É um filme de Wes Anderson.
A frase pode soar bastante óbvia, porém, se olhada mais profundamente, já consegue se ter uma noção do que significa. Anderson conseguiu ser um diretor tão autoral que em poucos segundos de projeção é facilmente identificável se tratar de um filme comandado por ele. Suas marcas registradas, como os planos simétricos e as cores pastéis, são sempre presentes em seus filmes e essenciais para criar a atmosfera e o universo próprio do cineasta. É um grande mérito por poder figurar nesse panteão de cineastas autorais tendo menos de 25 anos de carreira como diretor.
Assim, o que encontramos em seu mais novo filme, Ilha de Cachorros, é exatamente essa característica distinta em suas obras. Se tratando de seu segundo longa de animação (o primeiro é O Fantástico Sr. Raposo) e novamente adotando a técnica stop-motion. É interessante que apesar de continuar articulando os mesmos elementos que sempre utiliza, ainda sim ele consegue explorar a linguagem que esse tipo de animação possui e tornar as coisas um pouco mais interessantes.
A história, escrita por quatro pessoas e roteiro de Anderson, se passa no Japão, onde uma cidade chamada Megasaki é afetada por uma gripe canina. Para remediar essa enfermidade, o prefeito Kobayashi decreta que todos os cachorros devem se locomover para uma ilha cheia de lixo, passando a ser Ilha dos Cachorros. Contudo, o jovem Atari, com um avião roubado, decide ir para a tal ilha para encontrar seu cachorro guarda-costas Spot. Se aliando a uma matilha disposta a ajuda-lo, Atari e os cachorros passam por uma jornada em busca de Spot.
Por ter o Japão como cenário, Anderson adota as gravuras e a arquitetura pertencente ao país para poder estilizar sua obsessão por planos simétricos, que aqui ganham contornos que remetem tanto a cultura japonesa como ao universo mais excêntrico onde seus filmes costumam passar.
Independentemente de qualquer conteúdo, é sempre um deleite estético ver um filme de Anderson. A meticulosidade em que enquadra os personagens, o cenário, objetos de cena faz com que cada quadro do filme seja emoldurável. Grande parte da beleza também se dá graças ao stop-motion, que permite que Anderson faça coisas interessantes com o formato, como colocar as imagens de monitores ou televisões em desenhos característicos do anime. Vemos até mesmo a clássica fumaça de quando um grupo de pessoas começam a brigar, tão característico dos desenhos animados.
Mais importante e impressionante é como esse tipo de animação dá vida para os personagens. Desde os detalhes de cada machucado dos cachorros residentes da ilha ou a forma como os pelos deles voam com o vento, o engajamento emocional vem graças a esses cuidados. Especialmente no trabalho que fazem aos olhos, ao tornarem tão expressivos e condolentes. Isso pode ser notado facilmente em Chief, um agressivo vira-lata, que esboça sentimentos como raiva, medo ou carência apenas com o olhar.
É interessante notar que, especialmente neste Ilha dos Cachorros, Anderson parece fascinado com o próprio ato de contar histórias. O filme se inicia com uma narração contando sobre uma lenda local, que não tem nada diretamente ligada ao enredo do filme, só apresenta claro paralelo com o enredo. Além disso, o tempo todo ele pontua flashbacks ou objetos importantes com letreiros que indicam quando algo aconteceu ou o nome de algum objeto, como a arma de Spot. Assim, o cineasta demonstra um claro gosto pelo total controle que tem da narrativa e como elabora ela.
Isso denota um caráter fantasioso quase infantil de conto de fadas, embora seja um filme claramente feito para um público mais adulto, seja pela violência ao revelar uma orelha de cachorro arrancada ou tratar de temas como suicídio e canibalismo. Neste hibrido, o filme destaca uma personalidade bastante própria e que induz a acompanharmos aquela história.
Os personagens aqui também são bem típicos do cineasta. Atari é um menino persistente e empenhado a todo custo a salvar seu cachorro. Mesmo que sua obstinação pela sua missão o torne fechado, há vários momentos em que sua vulnerabilidade escapa e vemos se tratar de uma criança, como ao brincar em um escorregador. Já o vilão, prefeito Kobayashi, funciona aqui por ser apenas um sujeito malvado e imponente, sem grandes nuances. Apesar disso, na proposta que o filme tem, é eficaz.
E claro, os cachorros são muito bem desenvolvidos, seja pelo já citado cuidado técnico com a aparência de cada um, seja pelo roteiro de Anderson e, claro, o elenco estrelar que dubla. Bryan Cranston, Bill Murray (arroz de festa em filmes do Anderson), Edward Norton, Jeff Goldblum, Scarlett Johansson, Greta Gerwig e outros fazendo pontas de luxo, como Frances McDormand, Tilda Swinton, Harvey Keitel, F. Murray Abraham e Yoko Ono(!) fecham um elenco absolutamente invejável, algo também bem característico de Anderson.
Chief, dublado por Cranston, é beneficiado pela marcante voz grave de Walter White, que dá um tom de hostilidade ao vira-lata, mas indo com naturalidade ao dócil e vulnerável. Já Spot, com a voz de Liev Schreiber, ressoa o pragmatismo de um guarda, mas que também se entrega ao afeto do dono. E da matilha de Chief, é engraçado a racionalidade e exatidão de Rex, feito por Norton.
Os personagens têm uma forma curiosa de interagem com uma formalidade não muito humanizada e bastante calculada, algo que combina com os enquadramentos e planos de Anderson. Eles possuem uma excentricidade que atiça a curiosidade de acompanha-los e passamos a nos importar com seus destinos e crermos em seus sentimentos.
Fazendo referências ao faroeste, colocando até mesmo uma bola de feno entre duas matilhas prontas para duelar, Ilha dos Cachorros é exatamente o que se espera de um filme de Wes Anderson: uma adorável história de personagens incomuns sob um esmero técnico e estilístico fabuloso.