Quando foi exibido pela primeira vez durante a abertura do Festival de Veneza de 2018, O Primeiro Homem recebeu uma calorosa recepção de grande parte da crítica internacional. Dirigido pelo badalado Damien Chazelle (vencedor do Oscar por La La Land), estrelado por Ryan Gosling (La La Land) e Claire Foy (The Crown), o longa-metragem foi avaliado na época como “sóbrio, contemplativo, emocionante e de qualidade técnica impressionante”, e confirmou as expectativas que uma produção com a assinatura de Chazelle já carrega naturalmente. O problema é o que o clímax do filme, sobre a chegada do primeiro homem à lua, no ano de 1969, tem um detalhe que acabou tomando proporções desnecessárias: cadê a maldita bandeira dos Estados Unidos sendo fincada na Lua?
Para começar a responder o motivo da polêmica, é preciso descrever melhor o tema central da produção. Porque O Primeiro Homem, como o título já diz, não é essencialmente um longa-metragem sobre como a raça humana conseguiu viajar mais de 380 mil quilômetros no espaço, mas sobre a jornada pessoal de um dos astronautas que realizou o feito: Neil Armstrong. Interpretado por Gosling, em mais uma parceria com Chazelle, o engenheiro aeroespacial é um homem comum, que mora com sua família na Califórnia no início da década de 60, e passa por um trauma que o marca para sempre: a morte de sua pequena filha, Karen, de apenas 2 anos, em função de um tumor maligno no tronco encefálico. A partida precoce da criança motiva Armstrong a buscar novos desafios em sua vida, e ele então se candidata a um programa espacial da NASA, em Houston, no Texas. Ele consegue a vaga no novo emprego e vê a oportunidade como uma forma de recomeçar.
A partir daí, O Primeiro Homem acompanha o processo de superação pessoal de Armstrong ao lado de sua esposa Janet (Claire Foy), dos jovens filhos Mark e Erick, e dos colegas de profissão, enquanto a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética se acirra durante a Guerra Fria, culminando no espetacular momento em que a nave Apollo 11 aterrissa no satélite natural da Terra. A triunfante sequência final é um dos melhores momentos do cinema em 2018 e imerge o espectador no espaço em uma concentração de todos os maiores méritos do filme (com destaque para a trilha sonora de Justin Hurwitz), “em um pequeno passo para o homem, e um salto gigantesco para a humanidade”. Um clímax épico e digno de um feito histórico. Mas não. Não vemos Neil Armstrong cravando a bandeira dos Estados Unidos da América na superfície da Lua.
“É como se eles estivessem envergonhados dos Estados Unidos serem os responsáveis dessa conquista. Acho isso terrível”, afirmou o presidente dos EUA, Donald Trump. Kyle Smith, crítico de cinema do National Review, afirmou que “a história pode ser inconveniente quando o patriotismo te deixa enjoado”. E Marco Rubio, senador do estado da Flórida, tuitou que “o povo americano pagou por aquela missão, em foguetes americanos, em tecnologia americana e astronautas americanos. Não foi uma missão da ONU”.
Detalhe: a bandeira americana aparece já fincada na Lua em diversos planos da sequência final e, segundo uma contagem feita pelo site Vulture, o objeto aparece hasteado em casas ou exibidas nos uniformes dos astronautas outras 18 (!!!) vezes ao longo do filme. Mas a ausência de uma única cena mostrando Neil Armstrong colocando a bandeira na superfície lunar realmente incomodou bastante gente, levando o filme a ser classificado até mesmo de antiamericano.
O protagonista (e canadense) Ryan Gosling saiu em defesa do filme: “Acho que, no final, a missão foi amplamente considerada uma conquista humana, e foi assim que escolhemos mostrar. Acho também que Neil era extremamente humilde, assim como eram muitos desses astronautas, e por muitas vezes ele tirou o foco de si mesmo e compartilhou com as 400 mil pessoas que fizeram a missão possível.”
Pete Hegseth, apresentador do programa “Fox and Friends”, da conservadora Fox News, rebateu: “Eu acho que o Ryan Gosling é um idiota. Isso é Hollywood. Eles estão com medo de usar a bandeira americana. Nós chegamos à Lua porque estávamos em uma corrida, em uma corrida contra um outro país. Você não faz isso como uma comunidade global, você faz isso para se proteger contra a ameça comunista que era a União Soviética”, acusou Hegseth. O comentarista político de direita Ben Shapiro, do The Daily News, também criticou a decisão do filme no vídeo abaixo:
E assim, o que supostamente deveria ser um mero detalhe, acabou inevitavelmente ofuscando as inúmeras qualidades do filme. Pois O Primeiro Homem é um filmaço, em que Chazelle tem o total controle como diretor sobre uma trama que é mundialmente conhecida, mas que aqui investe no sacrifício e superação de um único homem, ambientada em um Estados Unidos paranóico, questionador e determinado a chegar onde o homem nunca havia ido. Ryan Gosling e Claire Foy, acompanhados por coadjuvantes de peso como Kyle Chandler, Jason Clarke e Corey Stoll, formam uma dupla movida pelo anseio por respostas, enquanto o design de produção e a já elogiada trilha sonora criam a atmosfera de eventos tanto íntimos como grandiosos.
Mas mesmo com uma ótima recepção da crítica nos festivais de Veneza, Toronto e na época da estreia comercial do longa-metragem, O Primeiro Homem não empolgou. Lançado em outubro, o longa faturou decepcionantes 44 milhões de dólares nos cinemas americanos, e, meses mais tarde, também não recebeu o devido reconhecimento das premiações. É claro que a polêmica envolvendo a bandeira não deve ser considerada a única responsável pelo fracasso comercial do longa, mas é difícil mensurar quantos críticos, membros da Academia e potenciais espectadores, principalmente os mais conservadores, podem ter sido influenciados pela notícia e optado por não darem atenção ao filme.
Porque é difícil entender a ausência de O Primeiro Homem na briga pelos principais prêmios da famigerada temporada de premiações, principalmente pelo fato de ter toda a cara dela. Josh Singer, o roteirista do filme, que é baseada no livro de James R. Hanser First Man: The Life of Neil A. Armstrong, estudou meticulosamente a história de Neil e sua família para tornar o roteiro o mais autêntico possível, entrevistando familiares e amigos de Armstrong ainda vivos. Ryan Gosling, talvez no papel mais difícil de sua carreira, vive um Neil de poucas palavras e semblante fechado de forma magistral, enquanto Claire Foy também dá vida a uma personagem ao mesmo tempo à beira dos nervos e extremamente determinada… fora o trabalho novamente digno de aplausos de Chazelle, que parece não ter problema algum em mudar de gênero cinematográfico a cada novo filme.
No entanto, O Primeiro Homem concorre apenas em quatro categorias técnicas no Oscar 2019: Melhores Efeitos Visuais, Melhor Design de Produção, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som. Indicações mais do que justas, mas que não passam perto do reconhecimento que a produção merecia, indubitavelmente podendo estar brigando também pelas estatuetas de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Montagem, Melhor Trilha Sonora, Melhor Roteiro Adaptado, e por aí vai.
O absurdo torna-se ainda maior quando filmes apenas razoáveis como Bohemian Rhapsody, que tem 99% de seu encanto na atuação de Rami Malek e nas músicas do Queen, estão concorrendo em categorias como Melhor Filme e Melhor Montagem. Curiosamente, o BAFTA, principal premiação do cinema britânico, é a premiação em que O Primeiro Homem mais se destacou, com sete nomeações, dentre elas Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Montagem.
Não que estatuetas do Oscar, Globos de Ouro ou a bilheteria de um longa-metragem sirvam como o atestado de qualidade de alguma produção cinematográfica, mas é uma pena que algo tão bonito e realizado de forma tão caprichada esteja passando batido em uma época de premiações relativamente fraca. Como já aconteceram com muitos outros filmes, e como destacou Matt Neglia, do NextBestPicture.com, “daqui a alguns anos, vamos olhar pra trás e perceber que falhamos com O Primeiro Homem”.
Fotos da matéria: IMDB.