Por Felippe Gofferman
O “diferente” é uma questão de bagagem. O que parece bizarro aos nossos olhos pode ser uma oportunidade de entender um novo mundo de cores, gostos, aromas e sons.
O cinema tido como exótico nada mais é que a expressão de uma cultura diferente em sua máxima força. A aplicação do exagero cultural pode intensificar o estudo de um povo e facilitar sua apreciação, mas obviamente é necessário diferenciar o “exagero” com propósitos expositivos específicos do gore simplesmente pelo gore.
As indústrias cinematográficas asiáticas possuem suas peculiaridades e muitas vezes alguns filmes são mal vistos pelo público ocidental justamente pela nossa falta de abertura ao novo. No Japão, por exemplo, há um subgênero satírico que abusa do absurdo e do humor, mas sem deixar de lado a análise social e as reflexões sobre seu povo, como no caso do divertidíssimo Tampopo.
Escrito e dirigido pelo grande Jûzô Itami, Tampopo (1985) é uma obra-prima do cinema japonês pouco conhecida pelas bandas de cá.
O nome dado pela sensacional indústria brasileira de tradução de títulos talvez tenha uma parcela de culpa na pouca propagação do filme. Aqui ele recebeu um subtítulo que, apesar de remeter a uma inspiração de Jûzô, conferiu um tom de paródia de baixo nível para a produção.
Tampopo – Os Brutos também comem spaghetti tem uma clara referência ao clássico Os Brutos também amam (1953), mas isso não passa de uma pitada de tempero na salada de sabores e aromas proporcionados por essa análise social inesperada pelo tema central, mas que logo se mostrou comum aos filmes do tardio diretor.
O exótico filme pode ser entendido melhor se analisarmos um pouco a vida de seu criador. Jûzô, falecido em 1997, era filho de Mansaku Itami, outro importante diretor japonês. Mansaku morreu em 1946 deixando a família, em um Japão devastado pela guerra, dependendo dos cuidados de seus amigos do meio cinematográfico.
Kimi, mãe de Jûzô, decidiu se mudar e acabou deixando o filho, que se negou a sair de sua cidade, aos cuidados de Teruyo Nogami, uma fã de Mansaku que acabou criando forte amizade com a família devido a dezenas de cartas trocadas com seu ídolo enquanto ele estava acamado.
Teruyo, graças ao contato com aqueles membros da indústria cinematográfica que cercavam a família Itami, acabou se envolvendo com a área e se tornando continuísta, o que a levava a dias de trabalho praticamente sem momentos para dormir, dada a produção industrial que vivia o Japão na década de 1950.
O jovem Jûzô, com a pouca presença de Teruyo, precisou se virar entre fazer a própria comida e comer os almoços que a sua tutora trazia.
O ambiente inóspito daquele Japão da infância do diretor funcionou como objeto de estudo para um melhor entendimento da sociedade japonesa, partindo por sua gastronomia e tudo que a envolve.
Tampopo mostra a que veio já nos primeiros segundos, com uma quebra da quarta parede provocativa e uma narrativa fragmentada que se desenrola de diferentes formas durante o resto do filme.
A trama aborda o encontro de um caminhoneiro andarilho e seu copiloto, que param em um pequeno restaurante de lamen (massa semelhante a um macarrão acompanhada por uma sopa, legumes e carne) e se envolvem em uma briga com um bêbado local. A confusão faz com que a dona do restaurante, vivida por Nobuko Miyamoto, esposa de Jûzô, se envolva com o caminhoneiro para ajudá-lo a se recuperar dos ferimentos.
O contato entre os dois forasteiros e a cozinheira trazem à tona uma amizade instantânea que logo se fortalece, pois a pouca perícia da mãe solteira na cozinha provoca a necessidade por encontrar um mestre. Tampopo, nome da protagonista que dá título ao filme, vê em Goro, o caminhoneiro, um experiente amparo à seu pequeno negócio, tomando-o como professor.
Goro, vivido no melhor estilo Clint Eastwood por Tsutomu Yamazaki, decide ficar e passa a ajudar Tampopo a elevar o nível do pequeno restaurante, tanto em sua fraca mão gastronômica, quanto em sua postura frente aos clientes.
O filme possui fortes elementos dos Westerns e, obviamente, dos clássicos de samurais, como a formação de um grupo de especialistas para superar um obstáculo maior, a reverência ao tradicional e um respeito ao preparo da comida que conversa intimamente com a ligação entre um samurai e sua katana.
O autorismo de Jûzô se mescla a uma linha entrecortada de histórias que envolvem comidas e o prazer em se alimentar.
As diferentes classes sociais, as múltiplas comidas e os variados níveis de paixão pela comida criam um ritmo fluido para o roteiro que não se importa em apresentar personagens diferentes que logo são esquecidos, como se suas histórias fossem curtas metragens em meio ao universo gastronômico peculiar do longa. Uma antologia dentro de seu peculiar universo.
A crítica social é muito forte e de uma genialidade ímpar. O diretor utiliza personagens secundários como destaque e exemplo de como uma verdadeira paixão deve ser. O estagiário que não se curva ao puxa-saquismo padrão de sua empresa, os mendigos gourmets, o motorista chef e o bêbado apaixonado são peças fundamentais e caricatas usadas para expor a importância da comida para a sociedade, ainda que não demos seu devido valor.
A reverência aos alimentos remete algumas vezes ao polêmico A comilança (1973), porém aplica a antropofagia nas questões cotidianas de forma mais comportada e saudável. O brasileiro Estômago (2007) também compartilha com Tampopo o amor pela comida e o brilho nos olhos dos personagens que se envolvem com ela, além do grande apelo sexual que seu preparo e sua apreciação geram. Há, em ambos os filmes um quê de fetiche no ato de comer e de compartilhar a comida.
As referências aos gêneros clássicos e aos estereótipos consagrados como o forasteiro com passado nebuloso, o gângster sexy e perigoso ou o velho sábio, constroem um filme que transcende qualquer regionalidade e permite a apreciação de todas as audiências.
O belíssimo trabalho feito por Jûzô Itami não se contenta com a construção formulaica do cinema clássico e também não evita seus maneirismos e clichês, mas lhes dá nova roupagem e adiciona interação e exploração dos sentidos do espectador de forma única.
O trato com o espectador se desenvolve ao ponto de dar-lhe uma arma etérea e lhe proporcionar um assassinato poético sem culpa. A quebra da diegese raramente foi tão feliz, mas todo o trabalho atinge seu ápice e ao mesmo tempo sua conclusão em um plano final puro, belo e primitivo.
Um bebê, ao se agarrar-se ao seio de sua mãe, dá início a mais uma volta no ciclo da vida.