Por Felippe Gofferman
曰水火
木金土
此五行
本乎數
曰仁義
禮智信
此五常
不容紊
“San Tzu Ching – Seção IX”por Wang Yinglin
“Falando acerca de Água, Fogo,
Madeira, e Terra;”
Para explicar a origem do cinema de ação da China, precisamos primeiro analisar a questão etimológica. “Wu” significa “marcial” ou “armado”, enquanto “xia” se refere a “herói” ou “guerreiro”, a união dos termos resultou em um dos gêneros mais cultuados do cinema chinês.
O gênero denominado “Wuxia” é muito semelhante ao tradicional capa e espada da literatura europeia, mas todo baseado em uma filosofia referente a um código de honra e conduta histórico. Muito antes de serem levados ao cinema, os mestres marciais já habitavam as artes do país mais populoso do mundo.
Os poemas, os romances e o tradicional teatro de rua (fantoches e teatro de máscaras) já reproduziam histórias reais que se transformaram em mitologia e histórias fantasiosas que se eternizaram como heróis de uma nação.
Os próprios deuses que pavimentam a rica mitologia chinesa dialogam com as artes marciais. Guerras movimentam as divindades das variadas linhas mitológicas/religiosas e colocam seres super poderosos, que muitas vezes utilizam os elementos da natureza ou armas específicas como sua marca registrada, de forma a interceder pelo povo ou por imperadores (na China os imperadores tem status quase divino) frente a demônios e outras criaturas maléficas (metáforas claras para definir inimigos).
O historiador Sima Qian, da dinastia Han, definiu os heróis baseado no gênero:
“Honesto com as palavras, efetivo em ação, fiel ao manter promessas, destemido quanto a oferecer a própria vida para libertar os justos de algum abuso.”
É possível, ainda, destacar uma diferença crucial entre o cinema do país e de outra potência do continente que serviram para tornar esses filmes tão populares. O Japão sempre teve como característica social a valorização das espadas, o que tornava-a proibida para a população que não fizesse parte da nobreza. Os samurais eram figuras com destaque na sociedade e vistos com certo distanciamento e reverência, enquanto na China os mestres vinham do povo. O sentimento populista faz parte do país e as espadas e as técnicas de Kung Fu serviam nesses filmes como afirmação de suas origens.
“Esses cinco elementos
Guardam as relações numéricas.”
O sucesso nas outras mídias garantiram ao gênero uma rápida aceitação e produção em larga escala desde os primórdios do cinema do país.
Um exemplo marcante é Huo shao hong lian si (1928), o filme mudo, que foi um dos primeiros grandes sucessos do cinema local, tinha nada menos que 27 horas de duração, mas ao ser dividido em oito partes, só alguns de seus segmentos foram exibidos, nunca tendo sido apresentado por completo. Pode ser considerado como uma saga, mas na verdade o filme foi feito como um só, sendo dividido apenas na montagem.
O perfeccionismo do longa, tido como perdido pelos registros chineses, se refletia no elenco, que contou com mais de 300 artistas marciais e complexos sistemas de efeitos e perigosas cenas com lâminas. É importante lembrar que os chineses são conhecidos pelo desenvolvimento de tecnologia pirotécnica e tem grande raiz circense em sua história.
O gênero possui ainda diferentes vertentes. Assim como os Westerns que se diferem em vários pontos entre os clássicos e o subgênero spaghetti, no Wuxia existiam os filmes mais realistas e os que exacerbavam o misticismo e utilizavam a magia como atrativo, há aí uma ligação com o cinema desenvolvido por George Méliès, principalmente na questão dos cortes, sobreposições e perspectivas forçadas que conferiam a fotografia desses filmes do primeiro cinema chinês uma função importante de simular a magia.
Espadachim de um braço (1967) é outro exemplo clássico que pode servir como uma aula sobre o gênero. O filme trata de um guerreiro que vai atrás de vingança amparado pela memória de seu falecido pai e do povo massacrado que o acolheu. O diretor Cheh Chang também é responsável por Wu Du (1978), filme que serviu como base para o grupo de assassinas de Kill Bill.
Yu Wang, que protagoniza o filme, está entre os importantes atores do gênero, tendo dirigido 12 filmes e atuado em mais de 80.
“Falando acerca de Benevolência, Justiça,
Etiqueta, Sabedoria e Confiança;”
Foi nas décadas de 1950 e 1960 que o cinema de ação chinês passou a dominar de vez o mercado e a produzir números impressionantes. A grande responsável por aumentar e melhorar as produções do país foi a lendária Shaw Brothers, uma produtora e distribuidora familiar que, de forma semelhante ao star system de Hollywood, industrializou ainda mais o processo criativo e se cercou de profissionais competentes que logo se consagraram como os principais nomes do gênero.
Kung Hu, Cheh Chang e Chor Yuen formaram a cabeça que guiou o estúdio ao sucesso. Os três diretores foram responsáveis por grandes clássicos e pela consolidação do gênero com o avanço da tecnologia. Entre as inovações da Shaw Brothers está o investimento na coreografia da ação e na direção específica de cenas de ação.
Cheh Chang se aprofundou na violência e nas artes marciais em si. Levava para a tela um mix de influências devido a sua experiência como crítico cinematográfico e se tornou o responsável por moldar o cinema de Wuxia que conhecemos hoje.
Entre os clássicos dirigidos por ele estão: Wu Du (1978), Da jue dou (1971) e Ren zhe wu di (1982).
Kung Hu, apesar de ter dirigido “apenas” 17 filmes, tem uma fama que ultrapassa o gênero que durante anos representou. Hu é reconhecido mundialmente como um dos principais diretores chineses de todos os tempos por uma diferença crucial em relação a seus contemporâneos: ele via as artes marciais como uma possibilidade de levar poesia ao cinema. Os seus filmes trabalhavam as lutas de espadas como danças e seus atores como exímios bailarinos. A direção de arte era meticulosamente pensada para construir o ambiente e as personalidades. Suas histórias abordavam problemas mais profundos e tratados com uma sensibilidade muito mais condizente com a origem do gênero.
Entre seus clássicos estão: Dragon Gate Inn (1967), Daí zui xia (1966) e Tian xia di Yi (1983).
Chor Yuen foi o último dos três a entrar na Shaw Brothers, mas o que mais dirigiu. A sua principal característica é o desenvolvimento do visual fantástico. Chor aplica o conceito base da literatura Wuxia quanto a cenários e clima para se manter fiel a cultura milenar, criando cenas que se aproximam de pinturas e desenvolvendo o background místico das histórias.
Entre seus clássicos estão: Ai nu (1972), Liu xing hu die jian (1976) e Tien ya ming yue dão (1976).
“Essas cinco virtudes
Não podem ser negligenciadas.”
Os anos passaram e os Wuxia foram perdendo sua essência no cinema. As batalhas que colocavam o povo em evidencia, o amor proibido entre mestres de famílias rivais, os mestres que se sacrificavam por seus discípulos, os discípulos que tentavam manter honrada a memória dos seus mestres e tantas outras tramas utilizadas nos filmes clássicos acabaram sendo postas em segundo plano nos filmes de ação descerebrados que viraram uma febre no oriente.
As novas gerações de cineastas chegavam, já sem a Shaw Brothers para abastecer o cenário nacional, e se encaixavam nas produções para tentar criar um nome. Alguns desses diretores se consolidaram em outros gêneros e acabaram se tornando referências mundiais.
Wong Kar Wai, Zhang Yimou e Ang Lee se consagraram com temas polêmicos, sensíveis, fortes e com características autorais marcantes, mas que não tinham ligação direta com o gênero que servia como pedra de fundação do cinema de seu país. Os três sentiram a necessidade de se arriscar no caminho do Wuxia e elevaram a um nível até então inimaginável devido à decadência que o gênero vivia.
O primeiro a se aventurar foi talvez o mais talentoso entre os diretores do país. Em 1994, Kar Wai levou as telas sua complexa trama que se aprofunda como nunca visto na construção das personagens que a protagonizam, ao mesmo tempo que dota-as de dor e veracidade, reconstrói o cenário fantástico de maneira brutal e eficaz, demarcando com força a mudança de território. Cinzas do Passado foi remasterizado e comercializado em uma versão em alta definição que merece ser vista.
Ang Lee realizou o mais internacional dos filmes Wuxia, contando inclusive com financiamento americano ao produzir O Tigre e o Dragão (2000), uma versão um tanto quanto mastigada para o público ocidental, afinal a questão cultural é muito forte nos filmes do tipo e uma obra sem preocupação em amenizar a necessidade de conhecimento prévio certamente não teria o sucesso que o filme teve nos centros de exibição fora da China.
O foco na exibição internacional também passou pelos longas de Zhang Yimou, mas em nada prejudicou os seus projetos, que mantiveram a fotografia e arte estonteante, constantes na carreira do diretor, e ainda conseguiram reafirmar a cultura chinesa. Herói (2002) foi sua obra Wuxia de maior capacidade técnica, mas seus sucessores possuem pontos positivos. O Clã das Adagas Voadoras (2004) e A Maldição da Flor Dourada (2006) são obras dignas do gênero e com grandes atuações e cores pinceladas por todos os cenários.
O gênero toma novos ares, resta acompanhar se os bons tempos para o cinema de artes marciais continuam.